Perdedores voltam sozinhos para casa. Vencedores não voltam.
Depois dum bom tempo fora, Daniel voltou para casa com um semblante que denunciava uma idade bem maior que a que realmente possuía. Sua mãe não o reconheceu quando viu através do olho-mágico, um sujeito cabeludo e magrelo parado em sua porta, com óculos escuros e uma mochila, bagagem insignificante se comparada a que ele havia levado quando se jogara no mundo. O modo como chegou não lembrava nenhum pouco a pressa e o barulho do dia em que saiu jurando nunca mais voltar.
Comeu mais do que gostaria, só para manter a boca ocupada e não ter que responder ao bombardeio de perguntas feitas no jantar. Tinha vivido coisas perigosas e divertidas, mas não teve coragem de mencionar nenhuma delas; e até se envergonhou ao constatar que as suas melhores histórias eram completamente impossíveis de serem contadas para quem lhe queria bem.
Embora toda a roupa que carregara estivesse suja, sua irmã só deixou que pegasse uma de suas camisetas emprestadas depois que ele prometeu ceder o broche de tartaruga comprado dum camelô em Santo Amaro, um artefato que ele jurara ter ganhado de um amigo ator em San Francisco. Não trouxera boas lembranças, mas todos comemoraram seu retorno e tentaram esquecer o dia em que ele foi morar com uma cigana holandesa que havia conhecido, lendo mãos no Ibirapuera.
Foi vestindo Ramones que, naquela noite fria e sem destino, Daniel cortou a Rua Augusta com as mãos no bolso de sua jaqueta menos preta, a mais usada. Tinha tomado umas e já estava legal quando desceu furando filas de emos e outros caras-sujas que engarrafavam as calçadas de pubs e puteiros. Interrompeu a caminhada para encostar-se ao balcão duma birosca, onde, de um trago, matou um agressivo destilado de cana e ficou mirando três garotas que flertavam entre si enquanto montavam todo um ritual para tomar uma dose de tequila fazendo caretas exageradas, típicas de iniciantes. Na porta do bar, dois caras davam seus lances num leilão por partes de bens de consumo sem amostra grátis, aqueles cujas fachadas vermelhas dispensam placa de VENDE-SE. Pediu um drink ainda mais quente que o primeiro e desistiu de arriscar matar a sede em sobras de salivas tão disputadas como aquelas. Voltando para a rua quase tropeçou num andrógeno que vomitava os pulmões na calçada; tal cena fez lembrar-se das vezes em que ia até o Centro só para se perder com os amigos.
“VIVENDO DO ÓCIO, HOJE NO DIU”. Aquele cartaz com quatro roqueiros alados só podia ser uma pista de onde encontrar mulheres e outras boas distrações. Daniel entrou num café com ar de cova de ratos, onde garotas com tatuagens e penteados que lembravam algo entre Amy Winehouse e Elza Soares, disputavam a linha de frente do palco e encomendavam palhetas e baquetas dos caras que passavam o som.
A menina de olhos de personagem de HQ japonês desencostou da parede depois dedar o terceiro fora consecutivo. Sentou-se ao lado do nosso anti-herói, que pediu um refrigerante para ver melhor. Depois de matar sua cerveja azul, ela olhou para o copo dele e fez uma piada qualquer. Embora só tivesse entendido “leite com chocolate”, ele riu, enquanto baixava a cabeça e lia “Sem par em SP” tatuado no pé que alternava uma melissa preta e branca. O assunto rendeu e ela quase se rachou de rir quando ele admitiu que, assim como aquela sua cicatriz no queixo, a camiseta e os brincos também eram culpa de sua irmã Lela.
Utilizando a velha técnica das historinhas tristes, não demorou a descobrir que Valéria gostava de meninas tanto quanto ele; embora não se importasse em experimentar lábios masculinos, conforme ficara provado quando trocaram telefones e carinhos sob um som nem sempre tão normal. Mas o sol não chegou a tempo de flagrar o instante em que se despediram, completando frases um do outro e andando olhando para trás enquanto davam tchau.
A caminho de casa, Daniel encontrou um brinco no bolso de sua jaqueta embrulhado num bilhete que queria saber: “Dani, vai me deixar sem par?” Ele riu e jogou aquilo na lixeira mais próxima.
Alguns meses depois, Lela fez um almoço para apresentar sua nova namorada à família. Daniel reencontrou Valéria naquele dia.
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