Conheci o Ni na quebrada, num
desses eventos em que a Periferia se une para fortificar sua luta de
resistência social pela cultura e pela arte: por que há, sim, um movimento
periférico onde a Arte vive. Quem for da capital paulista, quem conhecer
minimamente o autor deste livro, certamente saberá do que falo e não precisarei
desenhar a rota da Liberdade nem seu Sobrenome.
Trocamos nossos livros (nossas
estreias: primeira coincidência) tomados por uma empatia instantânea, e só
aquela corda na capa do livro dele, envolta a um coração fisiológico, arrancado
do peito, já era o suficiente para eu levá-lo para casa sem mesmo saber do que
se tratava. Era um tratado, um “Tratado Sobre o Coração das Coisas Ditas”, e
não haveria imagem melhor que pudesse ilustrá-lo.
Fora a “visão de mundo”, talvez o
modo de senti-la e tentar expressá-la em palavras, uma outra coincidência nos
aproximava de modo visceralmente místico. “A
um Certo Carlos”, dizia a frase que abria seu livro, o título de uma carta
endereçada ao Drummond. Ora, dizer que quase caí da cadeira não é força de expressão. Peguei meu livro (“Sentimento do Fim do
Mundo”) e coloquei ao lado do dele. “Caro
Carlos,” dizia o meu. Sim, ambos os livros exibiam praticamente a mesma
estrutura e ritmo como “comissão-de-frente”, a dizer para todos e para ele,
Carlos, que o carnaval acabou e que o Mundo sambava numa eterna quarta-feira de
cinzas.
Pois bem. Essas linhas, que ora
traço por aqui, pretendem fugir de todo academicismo ou específica crítica
literária, e isto certamente é uma demanda do próprio texto e deste sujeito
(lírico?) que se esconde pelo nome de “Ni Brisant”. Penso, percebo e sinto que
a obra do Ni se coloca num ponto onde, talvez, as questões literárias saltam
para um plano segundo, e ali o Homem, com seu “ovo no lugar do coração”, ilumina-se mais e mais para dizer: estou
vivo!
(Ni Brisant - Não levante o braço em vão) |
Não quero dar a entender que na
sua pena não há aquele cuidado estético e todo o aparato de instrumentos que um
escritor deve forjar da Língua para transformar o Mundo em linguagem. Pelo contrário, há de
haver muita técnica no ato de não deixá-la transparecer, e é exatamente esta
faceta que percebemos em qualquer passagem textual sua que tocamos com os
olhos, distraídos ou não.
Tomo a liberdade de voltar à
experiência da leitura do Tratado,
pois, dizem, um fato vale mais que qualquer argumento.
Nunca disse ao Ni, mas “Flora”
(nome de sua amada filha) é também o nome da minha amada e falecida avó, uma das
pessoas que mais amei nesta vida. O título desta crônica em si já me fisgava
por completo naquela ocasião, e talvez nem tenha sido o fato de pensarmos muito
(eu e minha esposa) nos nossos futuros filhos que tenha me causado tamanha e
súbita emoção; talvez haja mesmo algo de muita técnica em ser “natural”, deixar
a letras naturalmente batucarem no ritmo do coração.
“A
arte não me levou aonde eu queria, / mas fez do meu coração um lugar habitável”, diz os versos da série
“Para-choques”, impressas neste seu segundo livro. Suas palavras dizem mais de
si e de sua obra que qualquer esforço crítico que eu possa ter (e aqui eis uma
verdade, se é que existem). “Um
prisioneiro na solitária / que serra uma grade de aço por ano / e faz dum plano
de fuga sua oração diária”: quer imagem mais clara e fiel da alma deste
sujeito lírico? Há como não aproximar este sujeito lírico do autor “Ni
Brisant”, o cara que trampa, paga contas, agita saraus, tem RG, uma moto, e
camisa dos Ramones? Difícil. Basta conhecê-lo, um pouco que seja, para perceber
que em cada linha que traça, escorre, mais que as palavras, seu coração.
Mas eu falava de Flora, da
crônica “Flora” do primeiro livro e
do arrebatamento emotivo que tive. Ali, talvez eu tenha encontrado a melhor
expressão em palavras do que seja a “Felicidade”. Está lá, já no primeiro
parágrafo: “hoje meu corpo, alma e
coração, ocupam o mesmo espaço”. Confesso, de uma maneira que só a obra de
Ni pode nos invocar, que chorei. Mais: reli a crônica em voz alta à minha
esposa, e ela também chorou.
Com este fato dito, volto ao que
também já foi dito, o fato de sua literatura se colocar num ponto onde só há o
humano, sua alma e seu coração. Questionei-o certa vez:
- Meu velho, de onde vem tanta
coragem e tanta força expressas e evocadas nos seus textos? Você realmente
acredita nelas?
Sua resposta foi clara e direta:
- Escrevo para elas existirem e
eu acreditar nelas.
(Para Brisa) |
A Literatura, em verdade, só tem
um fim, a própria Literatura, diz a crítica convencional e aceita ao longo dos
séculos. Tudo muito certo, tudo muito bem, mas a Literatura pode ser mais e tem
provado isto também; talvez à maneira daquilo que os surrealistas franceses
chamavam de “aproximação Arte-e-Vida”, sua obra pretende ser, mais que tudo,
“viva”, no sentido de influenciar diretamente aquele que entra em contato com
ela, seja do ponto de vista social e político, seja do ponto de vista
humano-existencial; o que também pode sugerir, superficialmente numa primeira
leitura, um texto com muitas nuances de “auto-ajuda”, este termo tão carregado
de sentidos “menores” e comerciais do ponto de vista literário. Entretanto, num
sentido mais profundo, não há Literatura que não seja ou não acabe servindo de
“auto-ajuda”, já que é próprio da Literatura o querer “potencializar” a vida no
leitor. Contudo, penso que sua literatura, entre outras nuances, esteja
navegando num mar próximo, talvez inverso, e que poderíamos denominar de
“alter-ajuda”, uma vez que estamos diante de um texto que, ainda que lírico e
subjetivo, estimula a alteridade e propõe, sobretudo, um encontro profundo com
o Outro.
Consciente desta “demanda
técnica-literária”, não menos importante para qualquer escritor, “Para Brisa”
mostra um poeta Ni Brisant muito mais potente, do ponto de vista estético, e,
ainda, solto, à vontade com experimentações de novas formas e linguagem.
Aforismos concisos e poéticos nos “Para-choques”, demonstram um escritor em
constante auto-reflexão e reinvenção. “Todo
sujeito é verbo / o tempo todo”, diz um deles; “Vida, me abrace forte. / Eu quero mais de você!”, um outro; e
precisa falar mais?
Só mais um pouco, pois que
necessário. “Cruzes Vazias”, poema
central e importante desta obra, é um retrato límpido dos “homens modernos”,
estes fantoches do Sistema no qual se inserem - homens que “chegam à aposentadoria sem saber a quem (ou
ao quê) serviram”... Mas é preciso coragem: coragem de viver mesmo sabendo
que a vida não é o que prometeram, talvez por se descobrir, ainda, que a vida é
e pode ser muito mais: “Eis o último
mantra, armadura e oração pra vida inteira: / Coragem, coragem, coragem,
coragem, coragem.”
Não posso terminar, enfim, sem
retornar-me a ela (Flora), até porque “Para Brisa” a traz novamente, agora numa
carta de título “Amizade”, e, não por acaso, um dos momentos mais tocantes do
livro. Sei que existem diversas outras cartas escritas neste tom e estilo, e
faço fé que meu amigo leve a cabo a idéia de publicá-las todas juntas, e por
que não com o título, que até sugeri, “As
Faunas de Flora”?, mas isso, talvez, já é querer demais... Mas, Ni, queremos
mais, a vida quer mais!, não?
“Flora,
coragem!”, diz a
primeira frase da carta. Seria mesmo à Flora este pedido de coragem? Ora,
lindamente o texto vai falar da despedida e, talvez, da perda inexorável de um
amigo. Indiretamente contado assim, à Flora, a carga emotiva vai se
exponenciando ao limite da lágrima. Com esta “desculpa emotiva”, o texto ainda
fala das histórias dos “homens sem história”, de todos os “Bahias” - “porque tanto faz ser um Bahia ou o filho do
rei, sem luz nem amor, a gente é nada”, fica o ensinamento à Flora, e,
enquanto ela não puder ler, a todos nós.
Uma última confissão: dá para
contar nos dedos das mãos as passagens literárias que um dia me arrancaram
alguma lágrima: uma cidade se construindo na “madeleine” de Proust, talvez; “Elegia 1938” de Drummond,
provavelmente; um Deus-menino brincando no “Guardador de Rebanhos” de Caeiro,
com toda a certeza... Isto basta, e isto é tudo.
Pósfácio do livro Para Brisa por Willian Delarte, escritor
e co-editor da revista Rebosteio Digital.
Muita honra em traçar essas linhas. Muita sorte com o livro e com a vida, irmão.
ResponderExcluirabraço
Delarte