quarta-feira, 4 de maio de 2016

O cinema de palavras de Cidinha da Silva

Literatura é quando uma história nos convence de que a realidade pode ser outra(s), algo acima dos sonhos e das mazelas cotidianas. Não uma esperança convicta e anunciada, mas uma rachadura no muro de uma rua sem saída – para alguém que precisa chegar do outro lado. No entanto, literatura não é só isso.
Cidinha da Silva chega ao seu nono livro com o vigor e o ritmo próprios de quem já viu demais, sentiu muitas e não tem linha nem tinta para desperdiçar. Não cabem panfletos ou quebrantos. Vale mais caminhar e propor pistas de outras histórias: horizontais, obviamente.
Sobre-viventes é fertilidade criativa e crítica. Tocando em questões raciais, políticas e de gênero sem cair no mingau ralo do discurso pronto, das obviedades calcificadas. Narrativas de dentro. Os personagens são palpáveis, são gente, não bonecos representando instituições – como se tornou comum ler por aí. Não se trata de crônicas produzidas para agradar grupos. É o que precisa ser dito. Menos dedo na cara e mais desafios à reflexão, propositivo. Do nojo à simpatia, causam os sentimentos mais complexos. Indiferença é que não. Aí está o encanto maior, a gente lê como se assistisse. E, naquele instante, quando você pensa que flagrou o ideal do livro, Cidinha te põe pra catar cavaco, revela a imensidão de seu repertório, capacidade de subverter e manusear a língua (como em Setoró, por exemplo).
            O leitor não é testemunha, é cúmplice. Real como o agora (sem ser vulgar), cada crônica tem um coração como matéria-prima. Ora pelo afeto, ora pela sangria.       Extraídos de situações convencionais, como novelas, transportes públicos, redes sociais e noticiários, os casos passam pelo filtro da autora e deixam a suspeita-sensação de que aquelas personagens são todas partes de nós.
            Não por acaso, o título permeia e amplia os sentidos de todos os textos do livro. Com fôlego e parágrafos mais longos, as crônicas que denunciam violências (em geral) trazem um olhar jornalístico mais apurado em detrimento da poesia, que caracteriza as de cunho narrativo. E como preservar o lirismo em meio a tanto horror? Pois é, o texto que mais utiliza recursos poéticos se chama A Guerra.      Cidinha da Silva recorre o tempo todo às memórias de pessoas que tiveram (e/ou têm) o exercício pleno de suas humanidades negado. A autora não entrega tudo, muitas vezes prefere deixar o caso suspenso – como quem diz: “Receba. Você que continue, se quiser...” Por isso é necessária uma leitura dedicada para perceber os silêncios destas memórias femininas e negras – sobretudo. Se algumas crônicas permitem a vastidão da subjetividade, por outro lado, outras explicitam uma posição definitiva em defesa de lutas ancestrais. Sua fala em O leilão da virgem e a fita métrica é emblemática e ecoa“Eu juro a vocês, seria mais feliz ao falar de flores, amores e pássaros, mas esse pessoal não nos deixa criar em paz.”
            Um livro atento às emergências e contradições do nosso tempo. É uma trovoada neste aquário de literatura marginal. Dialogando com sentimentos imprevisíveis, toda uma tradição de resistência através de traços, cantos, sabores, sons, cores etc, Sobre-viventes não inventa a roda da literatura, mas faz com que ela gire com mais diversidade e reticências.
            Mais ou menos como diria Criolo (artista citado no livro), saber a hora de parar é para gente sábia. E a julgar pela qualidade literária que vem apresentando nestes anos todos, a história de Cidinha da Silva não conhecerá fim.
(Texto publicado na íntegra na revista Acho Digno:http://achodignoarevista.blogspot.com/…/o-cinema-de-palavra… )


segunda-feira, 11 de abril de 2016

Para reticências

Perdoa este pequeno século, Mãe. Ele chegou agora aos 16, acha que é moda usar bandeira rasgada como jeans. Tem apetite de gente e utopias... este miserável. 
- Um bando de cavalos selvagens galopando na parte mais sombria de meu coração. Coices e relinchos destroem a derradeira costela de meus tímpanos. A poeira dos cascos se converte em larva de vulcão subindo pela garganta a 125 anos luz por segundo. Olhos são o iceberg desta implosão. E uma saída é nada para tanto fogo líquido. 
Abraços pedem força - mais uma vez. Sem saber ou se dar conta que sou sertão. Repare qu'eu já fui forte demais. Sabia não?
 E neste presente instante só quero me permitir escorrer, desabar, me entregar ao pranto que toma conta de todos meus ossos. Abraço é mãe de todos nós.
Mas a madrugada nos ensinou cedo demais a ser impermeáveis. 
Nem todos podem expressar sua histeria. Alguém precisa manter olhos altos e joelhos firmes. Sustentar a si e os demais - que transformam soluços em convulsões de pus, urros, solidão e flagelo como impotência. 
As portas se fecham feito sutura pós operatória. Contar os pontos é inútil. A cicatriz incomoda mais quando Invisível. Sem calmantes ou analgésicos. Só acredito sentindo - mesmo.
Sem resignação. Sem culpa nem revolta. Sinto o que sente um animal preso numa esfera vedada, que teima diariamente em tentar escapar. Ideia da morte é conta-gotas. E as nuvens me ensinaram a ser mais chave que porta. 
Mãe me ensinou a não me afasto demais do coração. Mas eu acabo de abrir a porta de casa e penso que não tenho mais para onde voltar. Pego a caneta e só consigo uma palavra.
 'Mãe, Saudações sem fim.' Começavam assim todas as cartas que lhe escrevia. E eu ainda não sabia que seriam eternas, de fato.
Os cavalos (agora mais selvagens) se multiplicam e avançam. Não quero mais detê-los. Não posso mais.
Perdoa este século miúdo, Mãe. Eu não vou esquecer.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Algodão de Fogo


Hoje acontece a primeira edição de Algodão de Fogo. Estarei no Relicário Rock Bar com amigos de longa data. Numa noite nada previsível, resgataremos as origens do Blues e do Sarau. 
Estrelando:
Marina Mariná ✶ Paulo SS ✶ Rurall Jones ✶ Victor Rodrigues.
 Improvisos. Rockeragem Poética. Felicidades. Festival... Tudo questão de palavra! 
Chegue junto. 
Chame seus amigos, seu amor... Traga o seu melhor!
Venha ver e sentir como nascem as constelações.

Às 20h, Rua Manoel de Lima, 178 - Jordanópolis (Zona Sul) - São Paulo-SP


Bote Fé: Universo Paralelo dos Zines, 2015

Você já deve ter notado que adoro livros de bolso, né? Na real prefiro os grandes, mas como tenho o hábito de ler enquanto ando de ônibus, aí os livros menores são mais pertinentes.
Bora lá.
Estou terminando a releitura desta obra imprescindível para quem gosta de auto publicação, contracultura e "faça você mesmo" em geral.
Com caráter jornalístico e curiosidades que só uma autoridade no assunto poderia revelar, Márcio SNO produziu um documento histórico valioso sobre zines. Sim, este é um livro que transcende as aspirações da literatura tradicional.
O entusiasmo e paixão do autor transbordam em cada parágrafo; contudo, as décadas de vivência intensa no "Universo Paralelo dos Zines" não permite romantismos pueris.
As epígrafes dos capítulos ampliam e dão a tônica do todo.
O cara manja dos paranauês. Cita nomes essenciais para o rolê e contextualiza o papel do zine na 'história'.
Há poucas publicações (em livros) sobre este tema no Brasil, como o próprio Márcio ressalta aqui, daí a importância ímpar desta.
Procure saber. Este eu recomendo com força!
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Enquanto escrevia aqui ouvi o disco Mundo Livre S/A versus Nação Zumbi.
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Obs. Este é o Bote Fé, um projeto de mini resenhas de obras de autores vivos, que lançam livros nada convencionais.
Toda segunda-feira tem novidade na página:https://www.facebook.com/nibrisant/ 




segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Catando resíduos de amanhã

É aqui onde estou: agora.
Sincero como quem pede esmola durante a missa para beber. Uma velha cascavel que protegeu e chocou ovos o verão inteiro para ver nascer filhotes de pombo. O cara que pega grana com agiota pra pagar o almoço de sua namorada... e leva bolo. Como quando alguém desculpa nossos vacilos e atrasos, mas a gente não se perdoa. Alguém que viaja 74 anos luz para ver o show dos Stones e, na hora h, toca ultrage a rigor. O corredor que treina para disputar maratonas, mas vive entrando em corridas curtas. Como a primeira vez que uma mãe vê seu filho depois que ele morreu. Quando a gente ouve "no entanto" depois de um sim. Quando demorei esperando o momento certo de voltar, e no instante que me decidi, soube
que não existia mais pra onde.

E eu tinha o sorriso de um beijo de Virginia Wolf. Era a glória de um garoto recém saído da sala do diretor. Tinha tudo que tem uma menina enfrentando uma inesperada overdose solitária de amor puro. Todos os céus que uma montanha pode ser para a sombra.
 Eu era tudo que o Chile foi para a liberdade. 
Apontar os sete erros deste jogo não me fez melhor.
Estamos no mesmo barco, passarinho. Bote fé. Reine. E use esta âncora como guarda-chuva. 
 Por este brilho no seu riso – eu sei – você já foi longe demais. Coleção outono inverno de decepções e cicatrizes. 
Os socos, velórios, traições e falências só te fizeram mais rebelde, indomesticável, afetuoso e amigo de asteroides sabor morango.
Poesia é a pátria sem chão, onde piso agora. Esta noite, vamos dançar entre as constelações de flores, passarinho.
Já nos ferimos demais, meu bem. Sinta meu pulso. Este é o ponto. E que me importa?
É aqui onde estou: agora.