terça-feira, 17 de maio de 2016

Fábrica de ontem

Ser correto ou pecado são apenas maneiras distintas de estar só.
O horizonte só existe para quem mira o interior de olhos alheios 
e consegue guardar o sabor do silêncio. 
Passarinho é um diamante que esqueceu de acordar. 
E agora que consegui meu primeiro abraço de verdade, sinto que 
Poderia aguardar calmamente que aquela garota retorne no início da alvorada - me pedindo perdão, com um pacote de pães frescos, bolo de rolo e um danone e um beijo na boca de meia hora.
E eu poderia esperar convites para Feiras literárias, saraus, galerias, universidades; disputar concursos [destes que os jurados odeiam poesia, analisam seu sobrenome, seus contatos influentes, seu poder aquisitivo e experiência com subornos e cocaína]
Esperar que meus amigos me considerem um cara do bem - que fala camarada, empoderamento, coletivo, revolução e sistema em cada frase.
Pedi que toquem Vivendo do ócio na rádio e esperar que meus joelhos invejem os tímpanos - de tanto vibrar.
Esperar que as mães dos meus filhos me liguem falando sobre o dente que nasceu ou caiu, sobre uma nova palavra que as crianças aprenderam - enfim, que dêem notícia por qualquer razão, que não seja para cobrar meus intestinos. Pelo menos uma vez.E, por final, poderia esperar que o fim bata na minha testa perguntando se tem alguém aqui... Mas a morte já me ensinou demais. E até poderia, mas não tô a fim de esperar por.


segunda-feira, 9 de maio de 2016

Na natureza asfalto

Levantou da cama
Como os vietnamitas dançaríam maracatu entre os campos de Minas
Preparou o café
Como a mãe arrumaria seu filho para o primeiro dia de aula
Escovou os dentes
como um lavador de carros poliria o mais novo lançamento da NASA
Cuidou do silêncio
como um oceano destruiria um castelo no coração Saara
Fechou a porta
Como um luthier daria o último ponto após uma cirurgia do miocárdio
Sonhou com um afeto derrotando o mal
feito um sorvete acariciando a língua de um dragão
Não foi trabalhar
Como se o fim fosse caso de atestado médico
Espera continuação
como uma criança quarentona aguarda o último episódio da caverna do dragão
E ainda há quem use fones de ouvido
nos olhos.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Auto defesa de afetos

Saiu de casa
sem ter de quem se despedir
Como uma tenista cearense 
vai ao parque sem sua mochila: está nua
e sem pantufa

Olhou para os ombros
e abriu a mão
como se pudesse tocar o aroma do panetone
nos calos das rugas da retina de um recém-nascido

Quis fazer um poema
Não destes da moda, que falam sobre revolução, coisa nenhuma e tal
Como uma miss discursa sobre a África, sustentabilidade e a importância do KY para o swing mundial. Mas só poderia acreditar em um poema que fosse mais exposição que um nu frontal da alma 
e tão silêncio quanto um sim 
antes do final.

Tirou a maçaneta do cílio
e fez greve de futuros
Como quando o silêncio não encontra a sílaba do fim
E encerra a treta querendo dormir com seu ímpar

O crepúsculo te ensinou cedo:
as coisas que pesam são matéria de balança
as que flutuam, do mar
e as que faltam são parte do que mais guardou

Fez pole dance
no pescoço de um elefante (disfarçado de rato)
como uma planta esmaga a bota de um militar
no centro do pregão da bolsa

E
Ainda assim
não pôde (nem sabe como)
pedir sem querer milagre
Que as coisas sejam
Melhores
Como nunca.

O cinema de palavras de Cidinha da Silva

Literatura é quando uma história nos convence de que a realidade pode ser outra(s), algo acima dos sonhos e das mazelas cotidianas. Não uma esperança convicta e anunciada, mas uma rachadura no muro de uma rua sem saída – para alguém que precisa chegar do outro lado. No entanto, literatura não é só isso.
Cidinha da Silva chega ao seu nono livro com o vigor e o ritmo próprios de quem já viu demais, sentiu muitas e não tem linha nem tinta para desperdiçar. Não cabem panfletos ou quebrantos. Vale mais caminhar e propor pistas de outras histórias: horizontais, obviamente.
Sobre-viventes é fertilidade criativa e crítica. Tocando em questões raciais, políticas e de gênero sem cair no mingau ralo do discurso pronto, das obviedades calcificadas. Narrativas de dentro. Os personagens são palpáveis, são gente, não bonecos representando instituições – como se tornou comum ler por aí. Não se trata de crônicas produzidas para agradar grupos. É o que precisa ser dito. Menos dedo na cara e mais desafios à reflexão, propositivo. Do nojo à simpatia, causam os sentimentos mais complexos. Indiferença é que não. Aí está o encanto maior, a gente lê como se assistisse. E, naquele instante, quando você pensa que flagrou o ideal do livro, Cidinha te põe pra catar cavaco, revela a imensidão de seu repertório, capacidade de subverter e manusear a língua (como em Setoró, por exemplo).
            O leitor não é testemunha, é cúmplice. Real como o agora (sem ser vulgar), cada crônica tem um coração como matéria-prima. Ora pelo afeto, ora pela sangria.       Extraídos de situações convencionais, como novelas, transportes públicos, redes sociais e noticiários, os casos passam pelo filtro da autora e deixam a suspeita-sensação de que aquelas personagens são todas partes de nós.
            Não por acaso, o título permeia e amplia os sentidos de todos os textos do livro. Com fôlego e parágrafos mais longos, as crônicas que denunciam violências (em geral) trazem um olhar jornalístico mais apurado em detrimento da poesia, que caracteriza as de cunho narrativo. E como preservar o lirismo em meio a tanto horror? Pois é, o texto que mais utiliza recursos poéticos se chama A Guerra.      Cidinha da Silva recorre o tempo todo às memórias de pessoas que tiveram (e/ou têm) o exercício pleno de suas humanidades negado. A autora não entrega tudo, muitas vezes prefere deixar o caso suspenso – como quem diz: “Receba. Você que continue, se quiser...” Por isso é necessária uma leitura dedicada para perceber os silêncios destas memórias femininas e negras – sobretudo. Se algumas crônicas permitem a vastidão da subjetividade, por outro lado, outras explicitam uma posição definitiva em defesa de lutas ancestrais. Sua fala em O leilão da virgem e a fita métrica é emblemática e ecoa“Eu juro a vocês, seria mais feliz ao falar de flores, amores e pássaros, mas esse pessoal não nos deixa criar em paz.”
            Um livro atento às emergências e contradições do nosso tempo. É uma trovoada neste aquário de literatura marginal. Dialogando com sentimentos imprevisíveis, toda uma tradição de resistência através de traços, cantos, sabores, sons, cores etc, Sobre-viventes não inventa a roda da literatura, mas faz com que ela gire com mais diversidade e reticências.
            Mais ou menos como diria Criolo (artista citado no livro), saber a hora de parar é para gente sábia. E a julgar pela qualidade literária que vem apresentando nestes anos todos, a história de Cidinha da Silva não conhecerá fim.
(Texto publicado na íntegra na revista Acho Digno:http://achodignoarevista.blogspot.com/…/o-cinema-de-palavra… )