domingo, 6 de fevereiro de 2011

Qual a sua Arte?

Tenho percebido uma campanha cada vez maior do “faça o que quiser, no fim dará tudo certo”. Tais comerciais são sempre estrelados pelos mocinhos “número um” de suas áreas, os ultra-mega-power-bem-sucedidos, que do fosso de suas conquistas, berram: “Tá vendo? Se desejasse de verdade, você não seria mais um. Seria o cara. Se eu consegui, qualquer um também pode chegar lá. Basta querer.” 
(Chosa)
Tais palavras não mostram os sacrifícios feitos para chegar ao topo, as lutas diárias e, sobretudo, não dizem o óbvio: nem todos podem ser “o campeão”. A exceção é tratada como regra porque ninguém quer ouvir, nem contar histórias de derrotados.
É muito fácil sair pregando um discurso libertário, no qual se despreza o chefe e outras aporrinhações cotidianas, quando se tem a garantia de uma conta bancária completamente blue.  Melhor ainda é viver deste tipo de balela, como fazem os Best Sellers de auto-ajuda.
A maioria das pessoas não faz o que gostaria e provavelmente nunca pagará suas contas com o suor vindo daquilo que lhe agrada. Não tenho nenhum prazer em me incluir nesta lista, mas é preciso ter consciência da nossa condição, mesmo quando ela não nos alegra.
Algumas questões têm roubado o meu sono e agradeço a quem puder dar qualquer pista no sentido de respondê-las:
O preço que pagamos por ser quem somos, é o justo?
A medida usada para calcular o sucesso, é a correta?
Por que só sonhamos com o que está longe?
Suspeito, mas não sei.

A necessidade é sempre a maior motivação. É ela quem nos faz acordar, abrir os olhos e cumprir aquelas obrigações detestáveis. Quase tudo que fazemos baseia-se na "precisão" de ser feito. E mesmo se não precisássemos de nada, inventaríamos. As criações mais inovadoras são feitas nos períodos de dificuldade, de maior aperto.
Certa vez, o líder do movimento Pop Art, Andy Warhol, disse que um artista é alguém que produz coisas de que as pessoas não precisam. Bem antes disso, o genial Oscar Wilde já tinha previsto que toda arte é absolutamente inútil. Contudo, o artista pode exprimir tudo, ele é o criador de coisas belas.
(Chosa)
O significado da palavra necessidade, usada por ambos, é o de emprego de algo para um objetivo concreto e estabelecido. Por exemplo, quando vamos almoçar, temos em mente que aquele alimento saciará nossa fome e renovará nossas energias. O mesmo não pode ser dito quanto a ler um livro ou assistir a um filme. Estas atividades não têm um objetivo exato, determinado e pontual, mas nem por isso são inúteis e desnecessárias. Pelo contrário.
A Arte é incapaz de agir sobre o mundo de uma maneira efetiva, pois pertence ao espaço do subjetivo, que embora tenha influência sobre nossas ações, nunca poderá consolidar nada por ela mesma. Qualquer Arte, por mais bela ou exótica que seja, dependerá sempre do indivíduo que a retém para ter sentido.
A busca por um significado puro e nobre para a Arte é um tema velho, mas muitos homens de valor têm contribuído para que esta, ainda seja uma discussão válida e pertinente.
Sempre acreditei que todos nós temos algo a dizer, a mostrar. Algo só nosso, mas que pode ser compartilhado com outras pessoas, sem que isso nos diminua. Mas que neste processo de comunhão, ao tomar contato com as diferenças, possamos perceber, nas sutilezas, a proximidade que existe entre cada um, ainda que distante. Penso que Arte é tudo aquilo que nos torna mais humanos, nos põe em contato com o outro, sem que precisemos nos perder de vista.
Arte é libertação. Mas toda liberdade se torna imprestável, se não houver outro grilhão para nos acorrentar. É preciso estar preso para encontrá-la, assim como é necessário ter coragem para exercê-la.

A nossa existência não pode ser só esse feijão-com-arroz de todo dia. Tem que haver outras respostas, ainda que possam parecer inúteis para alguns. Você já descobriu qual é a sua Arte, o que o liberta e o que o prende? 

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Grande Ni

Na distância dos seus 103 anos, o vanguardista Oscar Niemeyer sustenta uma sobriedade e disposição encontradas apenas nos grandes homens. E já não se deixa amedrontar pelo ostracismo ou pela falta de reconhecimento, os maiores inimigos de todo artista (só deles?).
(Ni Brisant - Centro de SP)
Ao contrário do que se pode pensar inicialmente, a longevidade e o prestígio de sua fama não estão garantidos somente pela matéria bruta e colossal de suas obras. Nos seus traços, o concreto se transforma em poesia. Seus edifícios não têm fim neles mesmos. Servem para morar, agradar os olhos e tantas outras finalidades que não se esgotam. Construções feitas para gente. Parecem desenhos de um planeta, em que a linha reta e outras caretices nunca existiram. Quando se observa bem suas criações tortas e, ao mesmo tempo, modestas, ninguém diz que elas nunca estiveram ali. 
 Seus projetos são, antes de tudo, duelos com o impossível. Feitos para que não esqueçamos que é preciso desafiar tudo aquilo que não podemos. Sonhar é algo tão legítimo quanto as nossas necessidades mais básicas, como beber e comer.
(Ni Brisant - Av. Paulista)
Precisamos começar a reconhecer nossos heróis (!) antes que a velha dama de preto o faça. Talvez Niemeyer não “precise” das nossas homenagens, mas nós precisamos dele. Carecemos da vida, que encontrou nas medidas certas, disfarçadas de inexatidão, o que há de mais belo e que tem nas curvas, aparentemente despretensiosas, pistas para um futuro mais atraente. 
Seus monumentos são, por eles mesmos, um elogio à humanidade. O inanimado que aplaude o vivo, contradição que não se explica.
Niemeyer é um homem com tempo próprio. Nos seus gestos se manifesta uma generosidade madura de quem fala por códigos, que parecem querer dizer bem mais do que a nossa compreensão é capaz de captar.
A vida é importante; a Arquitetura não é. Até é bom saber das coisas da cultura, da pintura, da arte. Mas não é essencial. Essencial é o bom comportamento do homem diante da vida. A gente precisa sentir que a vida é importante, que é preciso haver fantasia para poder viver um pouco melhor. Palavras bonitas, né? Mas não fui eu quem disse não. Foi Niemeyer!
Para conhecer sua poesia concreta, vida e façanhas, acesse: http://www.niemeyer.org.br/

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Herança

Minha fé, que sempre exigiu provas para existir
tem agora no seu nome toda a esperança
nas coisas invisíveis, grátis e para sempre.
Revolução secreta, brusca e sem volta.

Fortuna dos meus dias de sorte,
bilhete milionário de loteria falida
cujos números foram cochichados
num sonho que vem de muito cedo.

Sendo o melhor agora, não tenha pressa de ser,
faça do tempo e da alegria seus melhores amigos
e eles lhe darão toda a manha, o ar e a coragem
que precisa para conquistar o que achar melhor.

A vida e o mundo não são bem como desejamos,
mas sempre valerá a pena lutar para que sejam;
siga seu coração, sonhe alto e nunca estará sozinha
sendo você, não haverá mal capaz de lhe atingir, nina.

(Flávia Barros - Concepção)











 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Artefatos quebrados

Cartas postais chegaram atrasadas,
vieram com perguntas respondidas com outras
e saudades tão antigas que fizeram esquecer
que o teu amor nunca foi só meu.
(Marcelo Gerace)

Livros em branco guardaram em sigilo
tempestades nascidas no chuveiro
e monólogos que nunca foram ouvidos
de utopias mal contadas e sem governo.

Murais testemunharam mudos
O dia em que artefatos quebrados
expulsaram meu nome dos cels.
e as mudanças deixaram tudo igual.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Brisa

Dentre todas as coisas que existem, o mar é a segunda mais plana, profunda e volúvel. No lugar mais alto deste pódio, está o céu. São os dois terrenos mais inconstantes, logo, são os mais perigosos. Pisá-los exige, além de cautela, estar bem acompanhado, sempre. Aeronautas e marinheiros, embora possuam as maiores cicatrizes, nunca desobedecem tais regras, por isso são também os que têm as melhores histórias para contar.
Céu é o irmão gêmeo mais velho do mar. Filhos órfãos do casamento impossível entre o infinito e a beleza, herdaram os traços mais graves e sinuosos de seus pais. No céu moram as perguntas que nunca serão respondidas, a ignorância mascarada de certeza. É lá que se esconde tudo aquilo que não alcançamos com as mãos, mas que nos fazem sonhar ainda mais longe.
Todavia, tanto o céu quanto o mar são perfeitos para transcender, deixar o pensamento sumir de vista e abrir os poros da mente, até conseguir pensar em nada. Usar apenas os sentidos para perceber o mundo, abrindo mão dos truques racionais aprendidos nos bancos da escola. Quem se diz incapaz de "ir além" ao encarar um deles ou de se emocionar ao presenciar qualquer outro fenômeno igualmente soberano não tem autoridade para falar da vida e suas graças. É como ler uma carta de amor endereçada a você e no meio do texto constar o nome de um terceiro elemento... Enfim, não dá para levar a sério este tipo de gente desinfeliz.
O mar, por sua vez, sempre esteve ali, horizontal e supremo. Com suas próprias leis, mantém intocáveis seus encantos, afrontando tudo que é sólido. Num ritmo de cadência e cólera, que ordena contemplação silenciosa, o mar nos afasta do que somos, livrando-nos das certezas agendadas. Se ele fosse gente, seria adolescente entrando na maturidade, com fúria, saliência e atrevimento. Seria magnata, com bens indeclaráveis, mas que nunca cairia na malha fina do imposto de renda. Ou talvez fosse mochileiro universal e clandestino. Enfim, o mar é pai das inspirações mais aleatórias e bonitas que alguém pode cantar.
Na próxima vez que for à praia, faça o teste, entre até que a água molhe seu umbigo, aí, grite com toda a força de um jeca: "Vem ni mim, mar!". E se prepare, pois ele virá como um rei que nunca deixa de visitar seus domínios. Ondas são engrenagens desgastadas e rangentes, com motor de última geração. Todas as teorias científicas sobre elas, parecem conto do vigário. Explicar é prender, limitar. Sendo assim, melhor deixá-las assim, com seus efeitos embasbacantes.
De volta à terra
Ainda com os pés na areia, conversei com meu amigo Damásio sobre como deve ser a vida de quem mora com vista para o mar. Naquele momento, só vimos vantagens, mas depois de pensar direito sobre esta resenha mudei de opinião e vou explicar logo isso antes que algum "caiçara branquelo" ache ruim.
Suspeito que quem já se acostumou a ver o mar todo dia, talvez nem consiga mais se deslumbrar diante do irmão do firmamento. Afinal, rotina é anestesia, lente embaçadora, inimiga das cores, dos sabores, odores e (só para não quebrar a rima) dos amores.
É difícil não se contaminar pela mesma frigidez que atinge os "testadores" de montanha-russa, que de tanto andar nestes brinquedos, nem sentem mais aquele frio na barriga e percorrem os trilhos bocejando, entediados.
Fenômeno idêntico tem assolado redações, congelado corações de jornalistas, principalmente os mais veteranos, que julgam já terem visto tudo que a vida pode mostrar e não se surpreendem com mais nada. Para eles, tudo é trivial, nada é digno de capa.
O lado perverso do cotidiano age tanto no silêncio quanto em meio às buzinas, adormecendo os sentidos, entorpecendo os sonhos. Entre "bons dias" e "boas tardes", vai transformando coisas formidáveis em lugares comuns. A mira desta epidemia está sempre apontada para os relacionamentos: namoro, casamento, amizade e tico-tico no fubá. A monotonia arranca a graça até das coisas mais fabulosas, fazendo com que os sentidos passem a ignorar tudo aquilo que antes os aguçavam. Profissões e companheiros, até então, "desejáveis" e de causar inveja a todos os outros mortais, se tornam obrigações diárias, cruzes que pesam tonelada e meia. Ninguém está imune. E todo cuidado é pouco! 
Já faz tanto tempo que apagaram as luzes, que até esquecemos os tons das verdadeiras cores do mundo, nem nos damos conta de que não fomos feitos para a escuridão e o cinza já não agride mais nossos olhos.
Outro arqui-rival da felicidade é o preconceito, signo do zodíaco que muitos desconhecem pelo qual é regido, enquanto outros, simplesmente negam seu poder e existência. Assim como nome de batismo, ninguém escolhe os preconceitos trazidos de berço, embora isso não sirva de desculpa para permanecer com eles. Ao contrário da rotina, que consome e satura, preconceito é um "queima largada" preguiçoso e desleal, que impede de ir além da primeira impressão, já sai classificando as coisas e pondo rótulos que só maltratam.
É óbvio que não dá para ficar agindo feito palerma, se "chocando" ou rindo de tudo que acontece ao redor. Mas não é disso que estou falando. Até porque, ninguém suporta gente "feliz para sempre" nem constantemente espantada. Contudo, também não creio que o "meio-termo" seja a solução. Se pudéssemos ainda acordar a curiosidade sapeca da criança que fomos, talvez restasse alguma chance. Mas como despertá-la a esta altura?
Todo o mal reside nesta imposição de entorpecentes eternos, no tapa-olho e cala-boca que nos são prescritos diariamente em troca de salários que se confundem com subornos. Hábitos cancerígenos que cercam os sofás da sala com grades invisíveis e vão tomando o restante da casa sem avisar. 
Bom mesmo é ter consciência do que se faz e poder escolher por exemplo, entre se "dopar" tomando uma cerveja e ficar legal ou beber um copo de água e se manter hidratado e careta. Entre outras coisas, ser livre é saber as vantagens e infortúnios das decisões que tomamos e mesmo assim não deixar de tomá-las. Não nos permitir sermos dominados pelo ostracismo, pela anestesia que chega mensalmente de brinde junto com as contas.
A prisão é tão opcional quanto a liberdade. Contudo, para ser feliz são necessárias alguma ação e ousadia, ao passo que, para ficar preso basta se deixar levar e pronto. Ninguém está a salvo do pior e se a vida é isso aí, então abra os olhos, parta para cima e viva tudo, mesmo.

* Fotografias de Ni Brisant.