segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Brisa

Dentre todas as coisas que existem, o mar é a segunda mais plana, profunda e volúvel. No lugar mais alto deste pódio, está o céu. São os dois terrenos mais inconstantes, logo, são os mais perigosos. Pisá-los exige, além de cautela, estar bem acompanhado, sempre. Aeronautas e marinheiros, embora possuam as maiores cicatrizes, nunca desobedecem tais regras, por isso são também os que têm as melhores histórias para contar.
Céu é o irmão gêmeo mais velho do mar. Filhos órfãos do casamento impossível entre o infinito e a beleza, herdaram os traços mais graves e sinuosos de seus pais. No céu moram as perguntas que nunca serão respondidas, a ignorância mascarada de certeza. É lá que se esconde tudo aquilo que não alcançamos com as mãos, mas que nos fazem sonhar ainda mais longe.
Todavia, tanto o céu quanto o mar são perfeitos para transcender, deixar o pensamento sumir de vista e abrir os poros da mente, até conseguir pensar em nada. Usar apenas os sentidos para perceber o mundo, abrindo mão dos truques racionais aprendidos nos bancos da escola. Quem se diz incapaz de "ir além" ao encarar um deles ou de se emocionar ao presenciar qualquer outro fenômeno igualmente soberano não tem autoridade para falar da vida e suas graças. É como ler uma carta de amor endereçada a você e no meio do texto constar o nome de um terceiro elemento... Enfim, não dá para levar a sério este tipo de gente desinfeliz.
O mar, por sua vez, sempre esteve ali, horizontal e supremo. Com suas próprias leis, mantém intocáveis seus encantos, afrontando tudo que é sólido. Num ritmo de cadência e cólera, que ordena contemplação silenciosa, o mar nos afasta do que somos, livrando-nos das certezas agendadas. Se ele fosse gente, seria adolescente entrando na maturidade, com fúria, saliência e atrevimento. Seria magnata, com bens indeclaráveis, mas que nunca cairia na malha fina do imposto de renda. Ou talvez fosse mochileiro universal e clandestino. Enfim, o mar é pai das inspirações mais aleatórias e bonitas que alguém pode cantar.
Na próxima vez que for à praia, faça o teste, entre até que a água molhe seu umbigo, aí, grite com toda a força de um jeca: "Vem ni mim, mar!". E se prepare, pois ele virá como um rei que nunca deixa de visitar seus domínios. Ondas são engrenagens desgastadas e rangentes, com motor de última geração. Todas as teorias científicas sobre elas, parecem conto do vigário. Explicar é prender, limitar. Sendo assim, melhor deixá-las assim, com seus efeitos embasbacantes.
De volta à terra
Ainda com os pés na areia, conversei com meu amigo Damásio sobre como deve ser a vida de quem mora com vista para o mar. Naquele momento, só vimos vantagens, mas depois de pensar direito sobre esta resenha mudei de opinião e vou explicar logo isso antes que algum "caiçara branquelo" ache ruim.
Suspeito que quem já se acostumou a ver o mar todo dia, talvez nem consiga mais se deslumbrar diante do irmão do firmamento. Afinal, rotina é anestesia, lente embaçadora, inimiga das cores, dos sabores, odores e (só para não quebrar a rima) dos amores.
É difícil não se contaminar pela mesma frigidez que atinge os "testadores" de montanha-russa, que de tanto andar nestes brinquedos, nem sentem mais aquele frio na barriga e percorrem os trilhos bocejando, entediados.
Fenômeno idêntico tem assolado redações, congelado corações de jornalistas, principalmente os mais veteranos, que julgam já terem visto tudo que a vida pode mostrar e não se surpreendem com mais nada. Para eles, tudo é trivial, nada é digno de capa.
O lado perverso do cotidiano age tanto no silêncio quanto em meio às buzinas, adormecendo os sentidos, entorpecendo os sonhos. Entre "bons dias" e "boas tardes", vai transformando coisas formidáveis em lugares comuns. A mira desta epidemia está sempre apontada para os relacionamentos: namoro, casamento, amizade e tico-tico no fubá. A monotonia arranca a graça até das coisas mais fabulosas, fazendo com que os sentidos passem a ignorar tudo aquilo que antes os aguçavam. Profissões e companheiros, até então, "desejáveis" e de causar inveja a todos os outros mortais, se tornam obrigações diárias, cruzes que pesam tonelada e meia. Ninguém está imune. E todo cuidado é pouco! 
Já faz tanto tempo que apagaram as luzes, que até esquecemos os tons das verdadeiras cores do mundo, nem nos damos conta de que não fomos feitos para a escuridão e o cinza já não agride mais nossos olhos.
Outro arqui-rival da felicidade é o preconceito, signo do zodíaco que muitos desconhecem pelo qual é regido, enquanto outros, simplesmente negam seu poder e existência. Assim como nome de batismo, ninguém escolhe os preconceitos trazidos de berço, embora isso não sirva de desculpa para permanecer com eles. Ao contrário da rotina, que consome e satura, preconceito é um "queima largada" preguiçoso e desleal, que impede de ir além da primeira impressão, já sai classificando as coisas e pondo rótulos que só maltratam.
É óbvio que não dá para ficar agindo feito palerma, se "chocando" ou rindo de tudo que acontece ao redor. Mas não é disso que estou falando. Até porque, ninguém suporta gente "feliz para sempre" nem constantemente espantada. Contudo, também não creio que o "meio-termo" seja a solução. Se pudéssemos ainda acordar a curiosidade sapeca da criança que fomos, talvez restasse alguma chance. Mas como despertá-la a esta altura?
Todo o mal reside nesta imposição de entorpecentes eternos, no tapa-olho e cala-boca que nos são prescritos diariamente em troca de salários que se confundem com subornos. Hábitos cancerígenos que cercam os sofás da sala com grades invisíveis e vão tomando o restante da casa sem avisar. 
Bom mesmo é ter consciência do que se faz e poder escolher por exemplo, entre se "dopar" tomando uma cerveja e ficar legal ou beber um copo de água e se manter hidratado e careta. Entre outras coisas, ser livre é saber as vantagens e infortúnios das decisões que tomamos e mesmo assim não deixar de tomá-las. Não nos permitir sermos dominados pelo ostracismo, pela anestesia que chega mensalmente de brinde junto com as contas.
A prisão é tão opcional quanto a liberdade. Contudo, para ser feliz são necessárias alguma ação e ousadia, ao passo que, para ficar preso basta se deixar levar e pronto. Ninguém está a salvo do pior e se a vida é isso aí, então abra os olhos, parta para cima e viva tudo, mesmo.

* Fotografias de Ni Brisant.

Um comentário:

  1. O bom de lê-lo é que mesmo que seja pela segunda vez, as palavras soam diferentes, penetram de forma singular a cada vez ainda mais quando se tem o olhar prara compor o todo do contexto, hj, logo cedo, pude sentir o cheiro da brisa e até quase tomei uma surra do mar...

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