sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A caminho


Eu queria janela, mas só tinha corredor. Tudo bem. Mais importante era viajar. A passagem custou-me 186,48 dinheiros, que consegui ao vender a roça de mandioca e minha bicicleta. Com a venda da farinha, mais a bezerra e uns rolos, juntei 150 dinheiros e me piquei pra São Paulo. Eu tava decidido a fazer Letras, custasse o que custasse; fosse lá o que Letras significasse.
Eu não tinha datas pra comemorar até o dia em que sentei na poltrona nº 32 da viação Gontijo. Do lado de fora do buzão, minha barreira (nome dado à galera, gangue, turma) gritava pequenas obscenidades, me dava tchau, me tirava o ar enquanto me dava forças. Naquele instante não suspeitei que lamentaria pelo resto da vida por tal erro: não ter dado um abraço em meus amigos. Um abraço. Baiano sabe chegar, não sabe se despedir, penso eu.
Aquilo era 17 de dezembro de 2004. Eis aqui o canhoto da passagem, que não me deixa mentir. É claro que a minha história não começou naquela tarde, na rodoviária de Acajutiba, com aquele povo reunido, tudo pronto pra dizer "Deus lhe abençoe!", "dê lembranças a Zé Carlos", "cuidado com as primas", "tem dez conto aí pra me emprestar?"... 
É certo que eu não nasci ali. Mas a partir daquele dia, comecei a sentir falta das coisas mais bestas, como pilotar carroça, brincar com sobrinhos, pegar um baba: casados contra solteiros, beber e pedalar, pedalar. Detalhe: depois dali, ninguém nunca mais me chamou por Nicolau, Nivaldinho, seu poeta, o fio da dona Maria... Por Ni ainda chamam, mas Ni é diferente, né? 
Depois de um dia e duas noites de viagem, desembarquei no Tietê com o coração todo nervoso. Lembro bem, gastei 30 dinheiros só com lanches no caminho. Eu tava traumatizado: "como pode um pão com carne custar 7 dinheiros?" No Barreiro, o cara tinha que trabalhar 9 horas embaixo dum sol lascado pra ganhar 10 contos... "Como pode?"
Minha roupa caberia numas duas sacolas dessas de mercado, mas como é de conhecimento de todo vivente, retirante é mula: transporta tapioca, farinha, doce de leite, jaca, bala, carne de bode e tudo mais que seja removível e não supere a cota de 30 quilos estabelecida pelas empresas de ônibus. Em outras palavras, cheguei carregado de beregats (nome dado às tranqueiras, muambas). Tudo bem. Mais importante era viajar.
Era 7 da manhã e eu já tava andando pelas ruas de São Paulo. Vi duas meninas de cabelos coloridos num ponto de ônibus em Moema. "São punks", alguém disse. "Quer dizer que isso é que é ser punk?", pensei. "Decente!", concluí.
No trajeto Terminal Tietê-Cocaia, vi um prédio feito todo de vidro (como pode?), uns caras com as calças lá em baixo e um monte de coisa doida. Eu tava todo bestão.
Era domingo, comi biscoito com coca-cola no almoço. Na MTV passava o clip "Hey Ya", do Outkast, na Globo passava anúncio do "Meu tio matou um cara" e, no meu coração, tudo ficava; Passei os meses seguintes com três pensamentos no lugar das ideias: como fazer pra fazer Letras; como será que tá minha barreira; como é que pode...
Enquanto o tempo fazia o papel dele, fiz o que sei. Estudei e concluí o curso de Letras em dezembro de 2008; Vi minha filha nascer em março de 2011; Escrevi e em novembro de 2011 lancei meu primeiro livro. Sim, hoje eu tenho datas para comemorar. 
Essa semana completou 8 anos que cheguei aqui em São Paulo. Nem tudo foi flores. Existe ainda saudades, fracassos, perdas, separações, apertos e perigos a superar. Mas existe também vontade, amor e coragem. Existe minha barreira. 
Tou a caminho. Não cheguei lá, nem descobri onde fica esse lugar (lá). Sei que mais importante é viajar. 
Uma vez perdida, toda força será encontrada.

2 comentários:

  1. Emoção, Ni! Eu cá sinto falta de uma barreira, de pessoas de verdade, gente!!! Vejo pessoas ligadas em carros, silicones, luxos,... e me emociona ver que há gente com coragem de se ligar em letras!!! 1000 palavras!!!!!

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  2. Chorei... lendo.
    Assim como chorei quando ouvi (áudio do face)ainda mais com a sua entonação, norteste vivo.
    Chorei, porque também sentei numa poltrona da Gontijo de lá pra cá em busca de uma "Lá".
    Uma vez perdida toda força será encontrada, você diz, essa força, creio eu, é encontrada sempre nos encontros de nordeste, como nosso caso.
    Sou Cearense, nordestino e acima de tudo baiano como tú, como todos que vem pra cá em busca de um "lá"
    E tú ainda me pede pra ser crítico com seus textos. Porra
    Zé.

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