quinta-feira, 3 de março de 2011

Dos postais

Ninguém consegue ver seu próprio nariz sem a ajuda de um espelho. É uma ironia grotesca pensar que a parte central do nosso outdoor esteja fora do alcance dos nossos olhos, mesmo estando sempre embaixo deles. Olhamos tanto para o que está distante, que deixamos de enxergar as coisas mais fáceis e simples da vida. Mas você já deve saber disso, não é?
Pois bem, então vamos mais fundo.
(Iraildes Batista - Vista aérea de Salvador)
Há algum tempo colecionando cartões-postais tenho conhecido todo tipo de gente e viajado para lugares tão fantásticos que meus pés talvez nunca possam tocar. Mas a cartofilia (nome dado ao ato de colecionar postais) ultrapassa o didatismo ou a mera contemplação de belas paisagens e figuras. Não sei medir a dimensão dos regalos desta atividade, porque receber um postal é mais ou menos como aniversariar muitas vezes no mesmo ano, com a super vantagem de não mudar de idade.
Admito que depois de acumular figuras do mundo todo fiquei bem mais atento às nossas paisagens e cultura. Mas geralmente, quando mostro os postais de São Paulo a alguns amigos paulistanos, sou interrogado se não houve exagero nas cores ou se teve "mudança de computador" nas fotos, pois ali aquilo fica muito mais bonito que no original. Claro que há edições nas imagens, mas raramente são feitas alterações nas características básicas dos monumentos. O que quero dizer é que as pessoas tendem a não observar a beleza dos atrativos da própria cidade onde moram ou das coisas que as rodeiam. E não me refiro somente aos principais picos não, pois esta constatação, infelizmente se aplica a diversos outros aspectos.
Sempre que vou à Praça da Sé, na região central de São Paulo, fico observando os turistas guardando toda a cidade em suas máquinas fotográficas, nem os mendigos escapam. E fico pensando se os pedintes de lá são diferentes dos daqui ou se são as pessoas que ignoram a existência deles em sua cidade. Talvez a comida de fora nem seja tão boa quanto a nossa, a população local pode ser descortês e a cidade até feinha. Mas ao viajar, degustamos mais, tratamos melhor as pessoas, qualquer estátua se torna digna de um clique e tendemos a nos interessar por fatos e feitos que nem ligaríamos se não estivéssemos de férias. Turista é criança em excursão de escola no parque de diversões, sempre procurando uma chance de dar uma escapulida, na expectativa de que aconteça algo notável para poder contar em casa.
(Ni Brisant - Praça Castro Alves)
O mestre Sérgio Ifa sempre dizia que passou a compreender e a valorizar mais a nossa língua a partir do momento que foi morar em outro país e teve que lidar com outro idioma. Ainda nesta perspectiva, certa vez um imigrante alemão contou que foi aqui que conheceu a palavra mais bonita que já ouviu, e que na época não conseguia parar de repetir: "es-ta-cio-na-men-to, bonito". Tais relatos nunca me saíram da cabeça, como uma prova de que temos uma importância que não nos damos e que a língua materna é um patrimônio ímpar, que já não pode mais ser desdenhado.
Não estou recorrendo a um sentimento de narcisismo ou xenofobia, mas ao bom senso, que exige olharmos à nossa volta e reconhecermos o valor do que nos pertence, o brio da nossa cultura e a generosidade da nossa miscigenação.
Não é preciso ir muito longe para conhecer coisas bonitas e grandiosas. Se permita ser turista em casa e construa seus próprios cartões-postais. Não hesite em sacar uma câmera e sair por aí fotografando a vizinhança, um marco ou simplesmente se encarar na lente. Não seja um estranho de si mesmo, de sua história. Desabotoe os olhos e descubra que não importa o quanto o mundo seja grande: ele começará sempre aqui, na sua frente. 

terça-feira, 1 de março de 2011

Versos para esquecer

(Marcelo Gerace)
Desprezo é arma desleal
que dispara a dor no coração
quando o bem vira um mal maior .

As palavras perderam sua potência
e já não conservam os olhos secos
quando ridículo se torna todo esforço.

As expectativas foram vistas mortas
e não haverá refúgio no descanso:
uma vez perdida, toda força será encontrada.


* Texto também publicado em: Livre Fanzine.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Diversão S/A

(Paulo SS)
Como num fetiche sadomasoquista, nos consolamos vendo a agonia alheia. As expressões artísticas mais contempladas sempre foram aquelas que expõem os mais baixos dramas humanos. Sofrimento e choro, aliados a sorrisos brancos e olhos claros, são os ingredientes garantidores de sucesso e boa audiência. Todo mainstream sabe que a beleza é essencial, mas deve ficar em segundo plano. A dor é a estrela.
Toda angústia traz em si algo de sagrado e belo, assim como todo sucesso é carregado de histórias de fracasso, e vice-versa. Somos selvagens com roupas de pele de grife.
Assistimos à nossa realidade maquiada de outra coisa e nem percebemos que estamos do outro lado da tela; se torcemos pelo mais fraco, não é por sermos bonzinhos. Queremos que vençam porque cremos que somos eles, nosso dia vai chegar, teremos nossa vez. Enquanto isso, agimos feito aves de rapina, com controle remoto nas mãos e fome da miséria que não conseguimos deixar de consumir.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Vaso no chão


(Marcelo Gerace)
Ainda que eu pareça não saber,
conte-me suas dúvidas
e descobrirá que penso igual.
Meu coração voraz
suportará tudo
que vier de nós.

Os corpos foram estendidos
na forma de vultos nômades
além da matéria pronta
quando tua luz subornou minha visão
tonando-a sua amante mais infiel
esta fiscal desonesta da bravura.

Nas noites em que formos dois
e nos permitirmos ser mais,
a vida não passará em vão.
Nosso mundo não acabará
quando o final chegar triste
e quase morrermos por nada.

Qual a sua Arte?

Tenho percebido uma campanha cada vez maior do “faça o que quiser, no fim dará tudo certo”. Tais comerciais são sempre estrelados pelos mocinhos “número um” de suas áreas, os ultra-mega-power-bem-sucedidos, que do fosso de suas conquistas, berram: “Tá vendo? Se desejasse de verdade, você não seria mais um. Seria o cara. Se eu consegui, qualquer um também pode chegar lá. Basta querer.” 
(Chosa)
Tais palavras não mostram os sacrifícios feitos para chegar ao topo, as lutas diárias e, sobretudo, não dizem o óbvio: nem todos podem ser “o campeão”. A exceção é tratada como regra porque ninguém quer ouvir, nem contar histórias de derrotados.
É muito fácil sair pregando um discurso libertário, no qual se despreza o chefe e outras aporrinhações cotidianas, quando se tem a garantia de uma conta bancária completamente blue.  Melhor ainda é viver deste tipo de balela, como fazem os Best Sellers de auto-ajuda.
A maioria das pessoas não faz o que gostaria e provavelmente nunca pagará suas contas com o suor vindo daquilo que lhe agrada. Não tenho nenhum prazer em me incluir nesta lista, mas é preciso ter consciência da nossa condição, mesmo quando ela não nos alegra.
Algumas questões têm roubado o meu sono e agradeço a quem puder dar qualquer pista no sentido de respondê-las:
O preço que pagamos por ser quem somos, é o justo?
A medida usada para calcular o sucesso, é a correta?
Por que só sonhamos com o que está longe?
Suspeito, mas não sei.

A necessidade é sempre a maior motivação. É ela quem nos faz acordar, abrir os olhos e cumprir aquelas obrigações detestáveis. Quase tudo que fazemos baseia-se na "precisão" de ser feito. E mesmo se não precisássemos de nada, inventaríamos. As criações mais inovadoras são feitas nos períodos de dificuldade, de maior aperto.
Certa vez, o líder do movimento Pop Art, Andy Warhol, disse que um artista é alguém que produz coisas de que as pessoas não precisam. Bem antes disso, o genial Oscar Wilde já tinha previsto que toda arte é absolutamente inútil. Contudo, o artista pode exprimir tudo, ele é o criador de coisas belas.
(Chosa)
O significado da palavra necessidade, usada por ambos, é o de emprego de algo para um objetivo concreto e estabelecido. Por exemplo, quando vamos almoçar, temos em mente que aquele alimento saciará nossa fome e renovará nossas energias. O mesmo não pode ser dito quanto a ler um livro ou assistir a um filme. Estas atividades não têm um objetivo exato, determinado e pontual, mas nem por isso são inúteis e desnecessárias. Pelo contrário.
A Arte é incapaz de agir sobre o mundo de uma maneira efetiva, pois pertence ao espaço do subjetivo, que embora tenha influência sobre nossas ações, nunca poderá consolidar nada por ela mesma. Qualquer Arte, por mais bela ou exótica que seja, dependerá sempre do indivíduo que a retém para ter sentido.
A busca por um significado puro e nobre para a Arte é um tema velho, mas muitos homens de valor têm contribuído para que esta, ainda seja uma discussão válida e pertinente.
Sempre acreditei que todos nós temos algo a dizer, a mostrar. Algo só nosso, mas que pode ser compartilhado com outras pessoas, sem que isso nos diminua. Mas que neste processo de comunhão, ao tomar contato com as diferenças, possamos perceber, nas sutilezas, a proximidade que existe entre cada um, ainda que distante. Penso que Arte é tudo aquilo que nos torna mais humanos, nos põe em contato com o outro, sem que precisemos nos perder de vista.
Arte é libertação. Mas toda liberdade se torna imprestável, se não houver outro grilhão para nos acorrentar. É preciso estar preso para encontrá-la, assim como é necessário ter coragem para exercê-la.

A nossa existência não pode ser só esse feijão-com-arroz de todo dia. Tem que haver outras respostas, ainda que possam parecer inúteis para alguns. Você já descobriu qual é a sua Arte, o que o liberta e o que o prende?