terça-feira, 8 de março de 2011

Destes dias


Amanhã todos os sonhos serão lembrados
quando a chuva deixar o tempo sem previsão de luz
e o tédio devorar as horas de quem não conhece o amor.

Quando só restar coragem e uma chance pouca,
a grandeza dos melhores atos derrotará tua sina,
mas não desonre esta conquista tomando-a por milagre.

Num itinerário que sabota todos os esquemas,
o perigo surge do medo que te rouba e te cala
sem deixar ver quem sempre esteve do teu lado.

Toda primeira é vez que acontece apenas uma
e abre contagem desleal feita para se perder
pois todo fim traz valor nunca dado antes.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Dos postais

Ninguém consegue ver seu próprio nariz sem a ajuda de um espelho. É uma ironia grotesca pensar que a parte central do nosso outdoor esteja fora do alcance dos nossos olhos, mesmo estando sempre embaixo deles. Olhamos tanto para o que está distante, que deixamos de enxergar as coisas mais fáceis e simples da vida. Mas você já deve saber disso, não é?
Pois bem, então vamos mais fundo.
(Iraildes Batista - Vista aérea de Salvador)
Há algum tempo colecionando cartões-postais tenho conhecido todo tipo de gente e viajado para lugares tão fantásticos que meus pés talvez nunca possam tocar. Mas a cartofilia (nome dado ao ato de colecionar postais) ultrapassa o didatismo ou a mera contemplação de belas paisagens e figuras. Não sei medir a dimensão dos regalos desta atividade, porque receber um postal é mais ou menos como aniversariar muitas vezes no mesmo ano, com a super vantagem de não mudar de idade.
Admito que depois de acumular figuras do mundo todo fiquei bem mais atento às nossas paisagens e cultura. Mas geralmente, quando mostro os postais de São Paulo a alguns amigos paulistanos, sou interrogado se não houve exagero nas cores ou se teve "mudança de computador" nas fotos, pois ali aquilo fica muito mais bonito que no original. Claro que há edições nas imagens, mas raramente são feitas alterações nas características básicas dos monumentos. O que quero dizer é que as pessoas tendem a não observar a beleza dos atrativos da própria cidade onde moram ou das coisas que as rodeiam. E não me refiro somente aos principais picos não, pois esta constatação, infelizmente se aplica a diversos outros aspectos.
Sempre que vou à Praça da Sé, na região central de São Paulo, fico observando os turistas guardando toda a cidade em suas máquinas fotográficas, nem os mendigos escapam. E fico pensando se os pedintes de lá são diferentes dos daqui ou se são as pessoas que ignoram a existência deles em sua cidade. Talvez a comida de fora nem seja tão boa quanto a nossa, a população local pode ser descortês e a cidade até feinha. Mas ao viajar, degustamos mais, tratamos melhor as pessoas, qualquer estátua se torna digna de um clique e tendemos a nos interessar por fatos e feitos que nem ligaríamos se não estivéssemos de férias. Turista é criança em excursão de escola no parque de diversões, sempre procurando uma chance de dar uma escapulida, na expectativa de que aconteça algo notável para poder contar em casa.
(Ni Brisant - Praça Castro Alves)
O mestre Sérgio Ifa sempre dizia que passou a compreender e a valorizar mais a nossa língua a partir do momento que foi morar em outro país e teve que lidar com outro idioma. Ainda nesta perspectiva, certa vez um imigrante alemão contou que foi aqui que conheceu a palavra mais bonita que já ouviu, e que na época não conseguia parar de repetir: "es-ta-cio-na-men-to, bonito". Tais relatos nunca me saíram da cabeça, como uma prova de que temos uma importância que não nos damos e que a língua materna é um patrimônio ímpar, que já não pode mais ser desdenhado.
Não estou recorrendo a um sentimento de narcisismo ou xenofobia, mas ao bom senso, que exige olharmos à nossa volta e reconhecermos o valor do que nos pertence, o brio da nossa cultura e a generosidade da nossa miscigenação.
Não é preciso ir muito longe para conhecer coisas bonitas e grandiosas. Se permita ser turista em casa e construa seus próprios cartões-postais. Não hesite em sacar uma câmera e sair por aí fotografando a vizinhança, um marco ou simplesmente se encarar na lente. Não seja um estranho de si mesmo, de sua história. Desabotoe os olhos e descubra que não importa o quanto o mundo seja grande: ele começará sempre aqui, na sua frente. 

terça-feira, 1 de março de 2011

Versos para esquecer

(Marcelo Gerace)
Desprezo é arma desleal
que dispara a dor no coração
quando o bem vira um mal maior .

As palavras perderam sua potência
e já não conservam os olhos secos
quando ridículo se torna todo esforço.

As expectativas foram vistas mortas
e não haverá refúgio no descanso:
uma vez perdida, toda força será encontrada.


* Texto também publicado em: Livre Fanzine.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Diversão S/A

(Paulo SS)
Como num fetiche sadomasoquista, nos consolamos vendo a agonia alheia. As expressões artísticas mais contempladas sempre foram aquelas que expõem os mais baixos dramas humanos. Sofrimento e choro, aliados a sorrisos brancos e olhos claros, são os ingredientes garantidores de sucesso e boa audiência. Todo mainstream sabe que a beleza é essencial, mas deve ficar em segundo plano. A dor é a estrela.
Toda angústia traz em si algo de sagrado e belo, assim como todo sucesso é carregado de histórias de fracasso, e vice-versa. Somos selvagens com roupas de pele de grife.
Assistimos à nossa realidade maquiada de outra coisa e nem percebemos que estamos do outro lado da tela; se torcemos pelo mais fraco, não é por sermos bonzinhos. Queremos que vençam porque cremos que somos eles, nosso dia vai chegar, teremos nossa vez. Enquanto isso, agimos feito aves de rapina, com controle remoto nas mãos e fome da miséria que não conseguimos deixar de consumir.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Vaso no chão


(Marcelo Gerace)
Ainda que eu pareça não saber,
conte-me suas dúvidas
e descobrirá que penso igual.
Meu coração voraz
suportará tudo
que vier de nós.

Os corpos foram estendidos
na forma de vultos nômades
além da matéria pronta
quando tua luz subornou minha visão
tonando-a sua amante mais infiel
esta fiscal desonesta da bravura.

Nas noites em que formos dois
e nos permitirmos ser mais,
a vida não passará em vão.
Nosso mundo não acabará
quando o final chegar triste
e quase morrermos por nada.