terça-feira, 10 de maio de 2011

Manual hereditário de sobrevivência


Pulando a janela durante a madrugada, roupas socadas na mochila, pouca grana e alguém esperando. Ou não. Enfim, existem muitas maneiras de se saí da casa dos pais.
Seja fugindo ou pedindo a bênção, as últimas palavras trocadas na mística hora da despedida ficam gravadas por toda a vida, consolando ou agredindo.  As razões da saída variam muito, mas acabam perdendo a importância quando se está sozinho no mundo e a vida apresenta desafios tão bárbaros que forçam a dar atenção e valor somente ao que de fato interessa.
De Franz Kafka a Jorge Amado formou-se uma literatura bem peculiar sobre o fantástico dia em que saí de casa. O que me atrai nestes textos não é propriamente sua qualidade estética, mas a honestidade de palavras meticulosas endereçadas exclusivamente a um indivíduo.
Existe certa intromissão em se apossar deste tipo de coisa, como ler uma carta alheia sem a permissão do destinatário. Gosto principalmente das dicas de como proceder longe de casa, os manuais hereditários de sobrevivência.
Bem, hoje minha filha completa dois meses, por isso, embora pareça cedo para dar-lhe conselhos, reproduzirei dois escritos que considero modelos de conduta.
Os dez mandamentos cunhados pelo professor Manoel Ribeiro alcançaram fama graças ao seu rebento, o escritor João Ubaldo Ribeiro, que ao que tudo indica, fez excelente uso deles. Segue relação do que não ser: 
(Flávia Barros - Jóia)
1. Não seja irresponsável;
2. Não seja colonizado;
3. Não seja calado;
4. Não seja ignorante;
5. Não seja submisso;
6. Não seja indiferente;
7. Não seja amargo;
8. Não seja intolerante;
9. Não seja medroso;
10. Não seja burro.
Pois bem, D. Julieta soube resumir em apenas três regras os princípios que o jovem Drummond seguiria por toda sua vida. Num caderno de notas do mestre há a transcrição manual sob o título “Recomendações de mamãe”:
 1. Não guardes ódio de ninguém;
2. Compadece-te sempre dos pobres;
3. Cala os defeitos dos outros.
Amém.
No dia em que Flora nasceu tentei escrever algo que pudesse reproduzir o que sentia naquele instante, um esforço de registrar as impressões frescas daquele amor que se apoderara do meu coração, algo singelo e plural. Mas acho que não fui tão bem sucedido quanto gostaria. Apesar disso, entre os pensamentos mais variados e desconexos que tive naquela ocasião, enquanto ninava-a nos meus braços, lembrei destes conselhos citados acima e pensei alto: “você terá um bom coração, será uma pessoa do bem”. Esta foi minha única prece, minha primeira ordem e presságio.
 Até hoje continuo sem compreender a dimensão da ruptura que se sucedera ali, mas estou certo de que a maior lição de vida que aprendi não foi dada pelos meus pais, muito menos encontrada em depoimentos de antigos estranhos. O código que sigo foi transmitido pelos olhos da pessoa que mais amo e contém a única lei onipotente e eterna: jamais fazer algo que possa ofender uma criança.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Crônicas de um tempo sem futuro


Fones de ouvido calam o mundo, emprestam trilhas escapatórias ao ar coletivo de quem não quer escutar seus lamentos em bocas alheias. 
Relógios feitos para marcar a eternidade, se distraem apostando segundos em corridas sem destino, num tempo que leva a lugar nenhum.
Jornais baseados nos manuais diários são arrancados das prensas sempre atrasados e, antes que estraguem, são engolidos sem mastigar.
Flashes atirados contra os espelhos refletem sorrisos cavalares produzidos sob o entusiasmo coagido de quem não ousa encarar a solidão de frente.
Noites mais iluminadas que dias indicam a suspeita de forças desconhecidas que precisam ser reveladas urgentemente em locais tão bem ignorados.
A vida toca a morte em segredo toda vez que alguém perde a dúvida procurando túneis na escuridão da fé.
Palavras armadas em versos sem alma manipulam a realidade de quem espera a salvação em biografias alheias.
Aprendendo beisebol em vidraçarias de mentira
(Erick Silva)
Em meio a esta onda crescente de desesperança e medo, ainda assim, pessoas se casam e põem toda fé nos seus votos de amor; crianças nascem, vão para escola e aprendem a fazer lições iniciadas com “quando eu crescer” e acreditam que realmente serão grandes pessoas. Portanto não dá para simplesmente apertar o “DANE-SE” e dizer que tudo está perdido.
Ontem definitivamente não foi o melhor dia da minha vida. Mesmo assim, o peso do cansaço acumulado nos ombros e concentrado na testa não foi capaz de me fazer desistir, de me manter prisioneiro daquela sedutora cama de aluguel.
Houve um tempo em que tentei não esperar mais nada da vida, dos desconhecidos, nem das Cias de transportes e seguros. Depois de tanto quebrar a cara alimentando esperanças vãs, cheguei a me esforçar para não criar mais expectativas diante das pessoas. Ainda bem que não consegui, pois hoje sei o quão importante é correr atrás dos sonhos, ter a alternativa de seguir em frente, ainda que sozinho, e realmente, não esperar que ninguém faça por mim aquilo que eu desejo ou preciso. Sei o quanto é formidável se permitir acreditar nas pessoas e em finais felizes. Digo isso não no sentido da coisa ingênua e babaca, mas porque a vida precisa de alguma crença mesmo, de sermos mais pessoas físicas e não entidades com fins comerciais ou similares, entende?
O ódio é considerado por muitos como o símbolo máximo da subversão, do anti-sistema. No entanto, não há nada tão underground quanto a esperança e a bondade. Acreditar, isso sim é ter personalidade, é nadar contra a corrente.
Talvez até possamos viver sem os amigos ou amores, mas caso isso aconteça, deixaremos de ser gente e perderemos o elemento que nos liga a tudo que é supremo. Os outros somos todos nós.
Sobram argumentos para escrever crônicas de um tempo sem futuro, mas não. Hoje eu quero ser alegre, trocar idéias e manter o coração aquecido com a confiança de que os bons sentimentos permanecem seguros e inabaláveis. Ainda que o mundo não me dê tantos motivos, hoje quero falar sobre coisas bonitas, alegres e reais.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Conto do desapego


A vida é o ofício de se preparar para a morte. E vice-versa.
Henrique e Camila passaram o domingo juntos. No dia seguinte, ele trabalhou, tomou mais café do que de costume, não teve sono. Às três da madruga os créditos do seu celular acabaram e ainda sem conseguir dormir, se convenceu que a voz daquela garota era a mais bonita. Foi-se deitar pensando que a amava. Acordou atrasado e acordou com esta certeza. No rádio tocava a trilha do seu coração.
Camila, sem tomar conhecimento daquele repente de amor, desligou seu telefone e resolveu que não teclaria. Gastou a segunda-feira estudando para a prova de Estatística, que mais tarde seria cancelada devido a uma terrível epidemia de conjuntivite, a qual garantiu cinco dias de aulas suspensas.
Sua mãe que a menos de três meses havia pegado catapora num desses surtos, achou melhor não arriscar a sorte; e antes mesmo que Camila apanhasse seu celular e pudesse ver as 28 ligações perdidas ou os 5 e-mails que Henrique tinha lhe mandado, Dona Walquíria já tinha embarcado com ela para a parte mais periférica do interior do estado, onde visitariam uns parentes que há muito não viam. 
(Erick Silva)
 Na manhã de terça, Camila ficou inconsolável ao perceber que naquele lugar estaria completamente incomunicável com o resto do mundo. Tentou de todo jeito achar alguém que a levasse até a cidade mais próxima para que pudesse ligar para seu namorado, contudo, aos olhos de sua mãe, todo aquele esforço confirmava apenas que sua filha estava levando aquele relacionamento a sério demais. Logo esses dias de afastamento acabariam lhe fazendo bem.
Em outras ocasiões, eles ficaram até mais de uma semana sem se falarem e era sempre Camila quem quebrava esta abstinência. Mas agora, a impossibilidade de contato foi tomando aspecto de desprezo, de abandono; num instante, Henrique começou a pensar nas possibilidades mais desleais, sofria o desespero de um coração que se afoga no próprio sangue. De tanto ligar e não ser atendido passou a prestar atenção em sua fala, no silêncio do outro lado, que se confundia com o eco de suas palavras. E criou um ódio por aquela aflição de chamadas sem retorno, aquela ansiedade causada pela dúvida de não poder saber se da próxima vez haveria resposta para o seu alô.
Camila acabou se conformando. Afinal, não devia satisfação a ninguém; mais de oito meses juntos e Henrique nunca assumiu nada com ela. Era um tosco. Se duvidasse, nem tinha notado sua ausência. Foi repetindo isso para si mesma que na sexta-feira beijou Cláudio, o melhor amigo do seu primo Nestor. No sábado, véspera de voltar para casa, não precisou mais pensar em nenhum álibi para justificar as carícias violentas que trocou com um outro rapaz, de quem não se preocupou em saber o nome. Finalmente tinha descoberto as maravilhas daquele admirável mundo velho.
Embora considerasse o cúmulo da pieguice, naquele domingo, Henrique mandou entregar uma carta-testamento para Camila, na qual dava explicações minuciosas, dizia que levaria consigo a melhor coisa que possuiu, fazia um monte de perguntas iniciadas com “porquês”, entre outras sentimentalidades típicas de corno.
Quando chegou ao último andar, já não sabia o motivo que o trouxera até ali. Saltou porque tinha dito que saltaria, mas se tivesse um jeito de pegar aquela carta de volta sem que Camila a lesse, então não morreria nunca mais.
_ “A gente morre de besta mesmo”, foi o último pensamento que passou pela sua cabeça antes do baque.
Camila ficou tão chocada com a morte de Henrique, que desde então, não há um só final de semana que não seja vista com seu vestido de viúva solteira, cumprindo sua penitência na roda de samba do Benega’s Bar.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Para quem lê

Não discorrerei sobre o poder imensurável da leitura nem quanto ao seu papel insubstituível na formação de indivíduos pensantes ou sobre outras verdades já conhecidas. Também não arriscarei denunciar minha lista de livros favoritos e pisar neste céu de armadilhas traiçoeiras chamado gosto.
Todo mundo que cultiva o hábito da leitura, independente da razão que o motiva a fazê-lo, tem algo a declarar. No entanto, falar sobre este costume e os aspectos que o cercam não é nada simples. Aliás, por si só, a leitura já é um assunto grandioso e muito complexo, com possibilidades sem fim.
Cada leitor tem uma relação bem específica e pessoal com seu objeto de doração, por isso não pretendo "ensinar" como, o que ou para que ler.
Não existem regras ou fórmulas para tomar gosto pela leitura, mas se há uma pista para chegar lá, é esta: leia o que quiser, puder e o que achar melhor. Pois só degustando sabores diversos e extraordinários podemos apurar nosso gosto.
Não acredite nesta conversa (que eu mesmo costumo dizer, às vezes) de que deve ler isso e não aquilo ou que determinado livro não presta. Enfim, cada obra tem seu valor e cumpre determinado papel. Embora as melhores sejam sempre aquelas capazes de abraçar mais significados, tocar nossa essência e dar outra mão sob o nosso verniz de humanidade. 
Depois de digerir algumas sopas de títulos e uma boa multidão de autores, terá adquirido a autoridade própria que as palavras dão aos que souberam domá-las devidamente. Logo descobrirá tantas coisas absurdamente indizíveis que precisará de várias mãos cheias de palavras para justificar aquilo que aquelas primeiras significaram. E assim, sem se dar conta, você fará parte da fraternidade mais solitária que já existiu. Leitura é coisa de um, exceto nos transportes coletivos, claro.
Ler é brincar de ilha superlotada, isolando-se de um mundo através da conexão com milhares de outros sem nunca estar só.
Com sorte, talvez ainda encontre nos livros as perguntas certas para aquelas respostas que você traz escondidas em local tão sigiloso, que até esqueceu onde guardou a chave. 
Livros, assim como a vida, servem para tudo e nada ao mesmo tempo. Mas de repente, a “serventia” não seja algo tão importante assim. Porque o emprego que damos e o uso que fazemos das coisas é algo que só cabe a cada um definir por si.
Uma mesma obra literária pode produzir efeitos e impressões bem diferentes em cada pessoa. Quando relemos um livro começamos a enxergar outras perspectivas e nuances que nem percebemos da primeira vez, pois os bons estão sempre se transformando e, por dialogar com cada época, nunca perdem seu prestígio e relevância. Livro é coisa gravíssima (quase sempre).
De vez em quando nos deparamos com alguns livros (pessoas também?!) que não conseguimos compreender muito bem e até desistimos deles. Mas é bom ter coragem e se permitir encará-los novamente, pois existem tesouros que exigem duro esforço para que os reconheçamos como tal. É a vida.
Ouço muita gente discursar sobre o prazer da leitura e coisa e tal, mas pouco se fala dos seus espinhos. Ler nem sempre é fácil (quase nunca é). Me diga quem nunca abandonou um livro antes mesmo de chegar na página 20 ou 30? Pois é, sem falar naqueles clássicos gigantescos que são realmente fantásticos, mas que precisam de uma vida para lê-los e de outra para consultar o dicionário. 
Ler nos tira do lugar, provoca, liberta. Embora nem sempre estejamos prontos para nada disso.
Ler também é sofrimento.
Ultimamente tenho observado o “tipo de gente que lê”. Na verdade não existe um estereótipo tão uniforme assim, ao contrário do que se pensa inicialmente. Contudo, a maior parte são sujeitos que encontraram na leitura um escape para seus fantasmas, um porto seguro contra o "não-enquadramento" nos padrões sociais, estéticos e outras convenções perversas. Em suma, leitura é essencialmente coisa de desajustado. 
 As novas mídias, com seu arsenal de atributos interativos e “práticos” têm criado um público cada vez mais preguiçoso, que tomam por conhecimento estes slogans superficiais projetados em 3D. Mas esta não é a questão, não estou atacando as ferramentas high techs. Até porque, elas já fazem parte do nosso cotidiano, não dá para ignorá-las, elas se impõem! 
Todavia, o anúncio da extinção dos livros deriva de bem antes do advento do cinema, por exemplo. Parece existir uma indústria do apocalipse literário, que vive de inventar inimigos mortais para os livros, sem considerar que o maior poder deles vem da capacidade de adaptação, de sobrevivência. A invenção de um mecanismo não substitui, necessariamente, o anterior. Definitivamente, não consigo acreditar em um mundo sem livros, sem que eu possa passar a mão na folha e virar a página...
Confesso que desanimo toda vez que vejo certos vândalos praticando barbáries, depredando bens públicos e apelidando de protesto suas selvagerias sem causa; penso no erro que cometem ao usar palavras tão sagradas para nomear estes feitos baixos. Pois se há uma verdade que aprendi nestes anos de bibliotecas, sebos, botecos e afins, é que ler é um ato de grande contravenção, pensar é pura rebeldia e agir por si mesmo será sempre um crime hediondo e imperdoável.
Talvez nós leitores sejamos sempre a minoria, não obstante, eu já não tenho mais problema em sê-lo; esta certeza se firma toda vez que vejo os caminhos que a manada trilha. Hoje pela primeira vez, as minorias têm voz ativa. Portanto, basta ter em mente que este espaço não nos foi concedido sem grande luta e resistência. Então façamos prevalecer a antiga tradição gauche de descobrir qual é a nossa melhor parte e usá-la para que outras pessoas também consigam encontrar sua luz. 

* Ilustrações de Tigão.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Outro grito na madrugada


Correu disparado na direção da liberdade
sem saber que ela nunca mais o consolaria.
Duro, grave, bruto, doido, feio:
se tornara o que precisava ser.
Não foi por amor, nem por mau-gosto
que rasgou corações
aniquilou a carne
atravessou gargantas
estourou pulmões
e avançou para os lábios
onde mordaças brancas o prenderam
e tiraram seus sentidos com cólera metódica.
Ainda assim, incendiou a língua estéril
enquanto as grades irrigavam a fúria
vinda da pior fraqueza
que é nada poder fazer
por si, nem por ninguém.
Acuado, arrombou os olhos
derretendo-se num líquido venenoso.
Exaustão transformada na firmeza
dos clandestinos enterrados vivos
que confiavam no amanhã, na honra
e em cantigas que conheciam de ouvir.
A vista agride e despreza tudo o que encara
sem vacilar.
Mas já não pede mais vingança,
nem justiça, nem sangue, nem nada.
Sabe não existir alívio para a agonia
da ausência de quem jamais se despedirá
ou das promessas que nunca serão pagas em dia.
Natureza que não pode ser corrompida,
pois sendo a desgraça sua sombra,
é também sua amante, filha e sogra.
Amaldiçoado metal indomável,
com fome de gente e de tudo
que dançando desesperado no ar
invadiu espaço pessoal e intransferível
e arruinou a matéria frágil e besta
que é a vida, este corpo sempre estranho.
O olhar sustenta a segurança traiçoeira
dos que perderam mais do que possuíam,
cujos dias serão sempre uma dívida desonesta
com mundos de mentiras sinistras e boas de acreditar.
Resta nos sentidos a rude lembrança indefinida
de outro grito na madrugada de luzes acesas
que continha a única questão a ser esclarecida:
Por quê?