terça-feira, 7 de junho de 2011

Raquitismo Sentimental

(Marcelo Gerace)
A tua razão chegou com atraso de quase 3 horas
exatamente quando eu não precisava mais
a bebida acabou antes da minha sede
como sempre.

Pede informações a estranhos de como chegar fácil
mesmo sabendo que não tens mais para onde ir
pois minha companhia não está do teu lado
como antes.

A sua ditadura verbal entupiu as palavras de deveres
minhas mãos salivaram pelos sobejos do teu abraço
e a falta de confrontos foi o último dos sintomas
como tudo.

Dei minhas armas para tua proteção e atirastes no meu peito,
depois só restaram uns dois ou três motivos para ser triste
quando minha alegria é que tu nunca serás mais um deles
como jamais.

sábado, 4 de junho de 2011

Referências biográficas ou troca de figurinhas

A maioria dos meus heróis não tem superpoderes, força fora do comum ou qualquer outra virtude inata extraordinária que os tornem dignos de admiração. São quase todos anônimos, gente que enfrenta filas todos os dias, com contas a pagar, rotinas fatigantes e tantas outras aporrinhações iguais às nossas. 
(Paulo SS)
Travam lutas desleais para não ceder ao impulso natural de responsabilizar o destino ou outras pessoas por nenhum dos seus fracassos, mesmo os herdados.
Meus heróis estão por aí, andando com vontade. São tipos que não conseguem ignorar o que não é certo, fazem do inconformismo seu alimento, seu álibi para nunca tolerar as injustiças e crimes que se tornaram paisagens do nosso cotidiano.
São os que se negam a fazer o que é errado, ainda que a maioria o faça.
Não recuam, nem negociam coisas que não têm preço.
Conservam suas palavras, ainda que nunca tenham voz.
Meus heróis não herdaram a vocação para o sucesso através de nepotismos nojentos. Enfrentaram a tirania arrogante de quem vê o passado como único elemento capaz de determinar o futuro.
Meus heróis são raros. Alegrias e dores transparecem em cada átomo dos seus corpos, não sabem sentir comedidamente, pois desconhecem a medida burguesa de corações exatos e frios.
Meus heróis não nasceram para ser. Eles se fizeram. A partir daí, já são os melhores. Agora me diga, como são os seus?

domingo, 29 de maio de 2011

Para ninguém


(Marcelo Gerace - Inveja)

Separe as suas 10 melhores mentiras deste ano.
Recite as historinhas tristes da infância que não teve.
Carregue a expressão com seu monopólio da pior dor.
Estrangule a paz dos corações sem dúvidas.
Mutile todo desejo exibido em trajes molhados.
Boicote as lágrimas que tentam lhe causar remorso
e tenha um bom dia!

P.S.
Para quem acaba de sair daquela fossa, você até que não cheira mal. Mas não espere que os agentes da passiva lhe protejam quando o seu perfume vencer.
Eu amo muito mais do que a amei, mas ninguém saberá disso.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Depois da 24ª hora


(Erick Silva)
Hoje é um tempo com nada digno de ser contado,
medido em pulsos imóveis dos grandes ponteiros
vigilantes de cárceres da paz, que nos prendem
em tempos sem lembranças de como ser gente.

Dias que provei todos os gostos, bichos e cantos
meu miocárdio flertou com os “nãos” mais inalteráveis,
colecionou a solidão anunciada dos que me adoraram
e no fim, só amei aquilo que não consegui degustar.

Perdido na devassidão dos verdes anos, acordei tão alto
a ponto de enxergar o mundo inteiro sem abrir os olhos,
disputar as guerras mais intensas sem sair do lugar
e disparar beijos concentrados nos alvos mais distintos.

Já dancei músicas que só ouvi uma vez.
Sonhei com coisas cujo nome nunca soube.
Conheci os amigos que sempre quis ter
e desconfio que um dia, eu até fui feliz.

- Oh, que horas são?

terça-feira, 10 de maio de 2011

Manual hereditário de sobrevivência


Pulando a janela durante a madrugada, roupas socadas na mochila, pouca grana e alguém esperando. Ou não. Enfim, existem muitas maneiras de se saí da casa dos pais.
Seja fugindo ou pedindo a bênção, as últimas palavras trocadas na mística hora da despedida ficam gravadas por toda a vida, consolando ou agredindo.  As razões da saída variam muito, mas acabam perdendo a importância quando se está sozinho no mundo e a vida apresenta desafios tão bárbaros que forçam a dar atenção e valor somente ao que de fato interessa.
De Franz Kafka a Jorge Amado formou-se uma literatura bem peculiar sobre o fantástico dia em que saí de casa. O que me atrai nestes textos não é propriamente sua qualidade estética, mas a honestidade de palavras meticulosas endereçadas exclusivamente a um indivíduo.
Existe certa intromissão em se apossar deste tipo de coisa, como ler uma carta alheia sem a permissão do destinatário. Gosto principalmente das dicas de como proceder longe de casa, os manuais hereditários de sobrevivência.
Bem, hoje minha filha completa dois meses, por isso, embora pareça cedo para dar-lhe conselhos, reproduzirei dois escritos que considero modelos de conduta.
Os dez mandamentos cunhados pelo professor Manoel Ribeiro alcançaram fama graças ao seu rebento, o escritor João Ubaldo Ribeiro, que ao que tudo indica, fez excelente uso deles. Segue relação do que não ser: 
(Flávia Barros - Jóia)
1. Não seja irresponsável;
2. Não seja colonizado;
3. Não seja calado;
4. Não seja ignorante;
5. Não seja submisso;
6. Não seja indiferente;
7. Não seja amargo;
8. Não seja intolerante;
9. Não seja medroso;
10. Não seja burro.
Pois bem, D. Julieta soube resumir em apenas três regras os princípios que o jovem Drummond seguiria por toda sua vida. Num caderno de notas do mestre há a transcrição manual sob o título “Recomendações de mamãe”:
 1. Não guardes ódio de ninguém;
2. Compadece-te sempre dos pobres;
3. Cala os defeitos dos outros.
Amém.
No dia em que Flora nasceu tentei escrever algo que pudesse reproduzir o que sentia naquele instante, um esforço de registrar as impressões frescas daquele amor que se apoderara do meu coração, algo singelo e plural. Mas acho que não fui tão bem sucedido quanto gostaria. Apesar disso, entre os pensamentos mais variados e desconexos que tive naquela ocasião, enquanto ninava-a nos meus braços, lembrei destes conselhos citados acima e pensei alto: “você terá um bom coração, será uma pessoa do bem”. Esta foi minha única prece, minha primeira ordem e presságio.
 Até hoje continuo sem compreender a dimensão da ruptura que se sucedera ali, mas estou certo de que a maior lição de vida que aprendi não foi dada pelos meus pais, muito menos encontrada em depoimentos de antigos estranhos. O código que sigo foi transmitido pelos olhos da pessoa que mais amo e contém a única lei onipotente e eterna: jamais fazer algo que possa ofender uma criança.