quarta-feira, 30 de março de 2011

Para quem lê

Não discorrerei sobre o poder imensurável da leitura nem quanto ao seu papel insubstituível na formação de indivíduos pensantes ou sobre outras verdades já conhecidas. Também não arriscarei denunciar minha lista de livros favoritos e pisar neste céu de armadilhas traiçoeiras chamado gosto.
Todo mundo que cultiva o hábito da leitura, independente da razão que o motiva a fazê-lo, tem algo a declarar. No entanto, falar sobre este costume e os aspectos que o cercam não é nada simples. Aliás, por si só, a leitura já é um assunto grandioso e muito complexo, com possibilidades sem fim.
Cada leitor tem uma relação bem específica e pessoal com seu objeto de doração, por isso não pretendo "ensinar" como, o que ou para que ler.
Não existem regras ou fórmulas para tomar gosto pela leitura, mas se há uma pista para chegar lá, é esta: leia o que quiser, puder e o que achar melhor. Pois só degustando sabores diversos e extraordinários podemos apurar nosso gosto.
Não acredite nesta conversa (que eu mesmo costumo dizer, às vezes) de que deve ler isso e não aquilo ou que determinado livro não presta. Enfim, cada obra tem seu valor e cumpre determinado papel. Embora as melhores sejam sempre aquelas capazes de abraçar mais significados, tocar nossa essência e dar outra mão sob o nosso verniz de humanidade. 
Depois de digerir algumas sopas de títulos e uma boa multidão de autores, terá adquirido a autoridade própria que as palavras dão aos que souberam domá-las devidamente. Logo descobrirá tantas coisas absurdamente indizíveis que precisará de várias mãos cheias de palavras para justificar aquilo que aquelas primeiras significaram. E assim, sem se dar conta, você fará parte da fraternidade mais solitária que já existiu. Leitura é coisa de um, exceto nos transportes coletivos, claro.
Ler é brincar de ilha superlotada, isolando-se de um mundo através da conexão com milhares de outros sem nunca estar só.
Com sorte, talvez ainda encontre nos livros as perguntas certas para aquelas respostas que você traz escondidas em local tão sigiloso, que até esqueceu onde guardou a chave. 
Livros, assim como a vida, servem para tudo e nada ao mesmo tempo. Mas de repente, a “serventia” não seja algo tão importante assim. Porque o emprego que damos e o uso que fazemos das coisas é algo que só cabe a cada um definir por si.
Uma mesma obra literária pode produzir efeitos e impressões bem diferentes em cada pessoa. Quando relemos um livro começamos a enxergar outras perspectivas e nuances que nem percebemos da primeira vez, pois os bons estão sempre se transformando e, por dialogar com cada época, nunca perdem seu prestígio e relevância. Livro é coisa gravíssima (quase sempre).
De vez em quando nos deparamos com alguns livros (pessoas também?!) que não conseguimos compreender muito bem e até desistimos deles. Mas é bom ter coragem e se permitir encará-los novamente, pois existem tesouros que exigem duro esforço para que os reconheçamos como tal. É a vida.
Ouço muita gente discursar sobre o prazer da leitura e coisa e tal, mas pouco se fala dos seus espinhos. Ler nem sempre é fácil (quase nunca é). Me diga quem nunca abandonou um livro antes mesmo de chegar na página 20 ou 30? Pois é, sem falar naqueles clássicos gigantescos que são realmente fantásticos, mas que precisam de uma vida para lê-los e de outra para consultar o dicionário. 
Ler nos tira do lugar, provoca, liberta. Embora nem sempre estejamos prontos para nada disso.
Ler também é sofrimento.
Ultimamente tenho observado o “tipo de gente que lê”. Na verdade não existe um estereótipo tão uniforme assim, ao contrário do que se pensa inicialmente. Contudo, a maior parte são sujeitos que encontraram na leitura um escape para seus fantasmas, um porto seguro contra o "não-enquadramento" nos padrões sociais, estéticos e outras convenções perversas. Em suma, leitura é essencialmente coisa de desajustado. 
 As novas mídias, com seu arsenal de atributos interativos e “práticos” têm criado um público cada vez mais preguiçoso, que tomam por conhecimento estes slogans superficiais projetados em 3D. Mas esta não é a questão, não estou atacando as ferramentas high techs. Até porque, elas já fazem parte do nosso cotidiano, não dá para ignorá-las, elas se impõem! 
Todavia, o anúncio da extinção dos livros deriva de bem antes do advento do cinema, por exemplo. Parece existir uma indústria do apocalipse literário, que vive de inventar inimigos mortais para os livros, sem considerar que o maior poder deles vem da capacidade de adaptação, de sobrevivência. A invenção de um mecanismo não substitui, necessariamente, o anterior. Definitivamente, não consigo acreditar em um mundo sem livros, sem que eu possa passar a mão na folha e virar a página...
Confesso que desanimo toda vez que vejo certos vândalos praticando barbáries, depredando bens públicos e apelidando de protesto suas selvagerias sem causa; penso no erro que cometem ao usar palavras tão sagradas para nomear estes feitos baixos. Pois se há uma verdade que aprendi nestes anos de bibliotecas, sebos, botecos e afins, é que ler é um ato de grande contravenção, pensar é pura rebeldia e agir por si mesmo será sempre um crime hediondo e imperdoável.
Talvez nós leitores sejamos sempre a minoria, não obstante, eu já não tenho mais problema em sê-lo; esta certeza se firma toda vez que vejo os caminhos que a manada trilha. Hoje pela primeira vez, as minorias têm voz ativa. Portanto, basta ter em mente que este espaço não nos foi concedido sem grande luta e resistência. Então façamos prevalecer a antiga tradição gauche de descobrir qual é a nossa melhor parte e usá-la para que outras pessoas também consigam encontrar sua luz. 

* Ilustrações de Tigão.

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