segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Amizade*

São Paulo, 17 de dezembro de 2010
Flora, coragem!
Ontem o Romário foi demitido da empresa. Aqui, ele era meu único amigo. Antes dele chegar, era eu o “Bahia”, mas depois ficou sendo ele.
Gostava de conversar com o Romário porque a gente se entendia bem; bastava um olhar pro outro e dizer: eta pleura; da gota; vixi, cabrunco. Era decente!
Sabe, quase todo dia ele me mostrava aquele retrato no Ibirapuera com a mulher e suas duas filhinhas na garupa daquela bicicleta azul. Os olhos do Romário – assim como o de todas as pessoas - tinham estrelas, mas toda vez que falava da família e dos planos de voltar pra casa, os olhos dele se enchiam de constelações. E eu achava bonito escutar seus sonhos, podia medir o universo em suas palavras.
Pelo menos pude abraçá-lo antes que ele fosse embora. Sentirei falta, e é ruim pensar que não nos veremos mais... Sei lá. Pior deve ser não ter de quem sentir saudade, não ter de quem lembrar, não sentir.
Filha, queria ter dito que sentia mor orgulho de tê-lo como amigo e que era pra ele não ficar triste, nem desanimar, porque merecia coisa melhor que isso aqui. Enfim... mas talvez ele nem acreditasse. Achasse que eu só tivesse querendo fazer média ou tentando consolá-lo... essas coisas. Mas é verdade, eu admiro cada um dos meus amigos; todo retirante é meu conterrâneo.
Acho que ainda essa semana vão colocar outra pessoa para fazer o mesmo trabalho que ele fazia aqui. Afinal, tem sempre um “Bahia” procurando emprego. Ontem voltei pra casa pensando como vai ser o Natal do Romário. Pensando se vai ter “Papai Noel” pra trazer presente pras filhinhas dele. Porque é só chegar novembro e já tem Papai Noel na cidade toda. Até no ônibus tem. Não é certo que falte logo na casa do Romário, logo agora. Não quero te desanimar, mas Papai Noel não é um cara legal.
Filha, você deve estar se perguntando porque estou lhe falando essas coisas. Pois bem. Ninguém jamais escreveu sobre o Romário, sobre um pião, um desempregado. E escrevo isso porque talvez ninguém diga que o meu amigo vai fazer falta, que ele não pode ser substituído só porque existe outra pessoa que sabe apertar os mesmos botões, que sabe repetir os mesmos gestos de máquina.
Lhe contei essa história porque você precisa saber que eram “Bahias” os homens e mulheres assassinados na Candelária, Nagasaki, Hiroshima, Jerusalém e, dia desses, aqui perto de casa. Também foram os “Bahias” que inventaram a ginga, o groove, as greves, as guitarras. Não criamos a guerra. Nós somos o revide!
Woodstock, a Tropicália, o Pasquim, o Manguebeat: tudo movimento de “Bahias”. Garrincha, Elis, Chaplin, Dercy Gonçalves, João do Pulo, Bruce Lee, Jesse Owens, Lima Barreto... nenhum deles era baiano; eram todos “Bahias”.
Os livros de história não falam da gente; ninguém quer registrar nos filmes nem nas fotografias a grandeza do meu amigo. Mas ele existe. E é por isso que tou lhe escrevendo agora. Para que saiba que é bom conhecer e ter orgulho das pessoas, não porque elas são bem sucedidas, mais inteligentes ou chamam a atenção das outras. É bom gostar dos amigos exatamente pelo que eles são: humanos, amigos.
Flora, defenda com honestidade os seus sonhos. Que nunca falte sol em seu coração e amor para fazer acender constelações em seus olhos. Porque tanto faz ser um Bahia ou o filho do rei, sem luz nem amor, a gente é nada.
Com todo coração,
do seu pai, Ni.

[Da coleção Cartas a Flora, Ni Brisant]

Um comentário:

  1. Cara, vi você lendo ontem no Zé Batidão. Queria dar os parabéns você tem muito talento, fazia tempo que não escutava algo que me tocasse tanto, vai na fé!!

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