terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Sem par em SP*

Perdedores voltam sozinhos para casa. Vencedores não voltam.
 Depois dum bom tempo fora, Daniel voltou para casa com um semblante que denunciava uma idade bem maior que a que realmente possuía. Sua mãe não o reconheceu quando viu através do olho-mágico, um sujeito cabeludo e magrelo parado em sua portacom óculos escuros e uma mochilabagagem insignificante se comparada a que ele havia levado quando se jogara no mundo. O modo como chegou não lembrava nenhum pouco a pressa e o barulho do dia em que saiu jurando nunca mais voltar.
Comeu mais do que gostaria,  para manter a boca ocupada e não ter que responder ao bombardeio de perguntas feitas no jantarTinha vivido coisas perigosas e divertidas, mas não teve coragem de mencionar nenhuma delas; e até se envergonhou ao constatar que as suas melhores histórias eram completamente impossíveis de serem contadas para quem lhe queria bem.
Embora toda a roupa que carregara estivesse sujasua irmã  deixou que pegasse uma de suas camisetas emprestadas depois que ele prometeu ceder o broche de tartaruga comprado dum camelô em Santo Amaro, um artefato que ele jurara ter ganhado de um amigo ator em San Francisco. Não trouxera boas lembrançasmas todos comemoraram seu retorno e tentaram esquecer o dia em que ele foi morar com uma cigana holandesa que havia conhecidolendo mãos no Ibirapuera.
Foi vestindo Ramones que, naquela noite fria e sem destino, Daniel cortou a Rua Augusta com as mãos no bolso de sua jaqueta menos preta, a mais usada. Tinha tomado umas e  estava legal quando desceu furando filas de emos e outros caras-sujas que engarrafavam as calçadas de pubs e puteiros. Interrompeu a caminhada para encostar-se ao balcão duma biroscaonde, de um trago, matou um agressivo destilado de cana e ficou mirando três garotas que flertavam entre si enquanto montavam todo um ritual para tomar uma dose de tequila fazendo caretas exageradas, típicas de iniciantes. Na porta do bardois caras davam seus lances num leilão por partes de bens de consumo sem amostra grátisaqueles cujas fachadas vermelhas dispensam placa de VENDE-SE. Pediu um drink ainda mais quente que o primeiro e desistiu de arriscar matar a sede em sobras de salivas tão disputadas como aquelas. Voltando para a rua quase tropeçou num andrógeno que vomitava os pulmões na calçadatal cena fez lembrar-se das vezes em que ia até o Centro  para se perder com os amigos.
“VIVENDO DO ÓCIOHOJE NO DIU”. Aquele cartaz com quatro roqueiros alados só podia ser uma pista de onde encontrar mulheres e outras boas distrações. Daniel entrou num café com ar de cova de ratosonde garotas com tatuagens e penteados que lembravam algo entre Amy Winehouse e Elza Soares, disputavam a linha de frente do palco e encomendavam palhetas e baquetas dos caras que passavam o som
menina de olhos de personagem de HQ japonês desencostou da parede depois dedar o terceiro fora consecutivo. Sentou-se ao lado do nosso anti-heróique pediu um refrigerante para ver melhorDepois de matar sua cerveja azulela olhou para o copo dele e fez uma piada qualquerEmbora  tivesse entendido “leite com chocolate”, ele riu, enquanto baixava a cabeça e lia “Sem par em SP” tatuado no  que alternava uma melissa preta e branca. O assunto rendeu e ela quase se rachou de rir quando ele admitiu queassim como aquela sua cicatriz no queixo, a camiseta e os brincos também eram culpa de sua irmã Lela.
Utilizando a velha técnica das historinhas tristesnão demorou a descobrir que Valéria gostava de meninas tanto quanto eleembora não se importasse em experimentar lábios masculinosconforme ficara provado quando trocaram telefones e carinhos sob um som nem sempre tão normalMas o sol não chegou a tempo de flagrar o instante em que se despediram, completando frases um do outro e andando olhando para trás enquanto davam tchau.
caminho de casa, Daniel encontrou um brinco no bolso de sua jaqueta embrulhado num bilhete que queria saber: “Dani, vai me deixar sem par?” Ele riu e jogou aquilo na lixeira mais próxima.
Alguns meses depois, Lela fez um almoço para apresentar sua nova namorada à família. Daniel reencontrou Valéria naquele dia.

*Texto pulicado no livro Tratado sobre o coração das coisas ditas e no site Literattus.
(Paulo SS)

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