sábado, 1 de janeiro de 2011

Funeral dos deuses

Depois de certa idade, o arquivo pessoal, vulgo bagunça, foge do controle e organizá-lo se torna tarefa tão sinistra quanto desenterrar defunto. Além do mal cheiro, a gente sempre acaba achando coisas que nem supúnhamos e independente do estado que o desinfeliz esteja, nos afeiçoamos mais do que aconteceria em outras circunstâncias.
Antes que o fim de ano chegue e as sagradas neuras natalinas se instalem, resolvi pôr fim à zona. Admito que a geral não foi muito longe, mas se o quarto continua o mesmo de todo dezembro, ao contrário do que está pensando, não tem a ver com falta de coragem. Fracassei na excursão aos armários e portas-etcéteras, mas tenho um álibi forte. Uma eureca me bateu que nem anúncio de tragédia, com desespero e tudo. Demorou a cair a ficha, mas então, foi como quando a gente percebe que esqueceu uma coisa em casa só que já é tarde porque estamos no meio do caminho. Pressentimos o esquecimento sem saber. O estalo da constatação vem acompanhado de uma raiva, um desconsolo. Feito quando se quer dizer uma coisa e o nome próprio não chega na boca. Todas as outras palavras vêm, menos a que se quer. Depois ela chega que nem susto, quando não serve mais. Palavra é mesmo bicho de asa. 
Para entender o que vem adiante é melhor que conheça algumas negativas: nunca participei de qualquer fã-clube, não frequento bailes da terceira idade e, principalmente, ainda não cheguei aos quarenta anos. Portanto, isso não passa de suposições supervalorizadas. Ou não.
Entre a poeira de discos, cartas, livros e outras anacronias tive a sacada mais triste da semana: os deuses estão morrendo!
Sempre buscamos alguém maior que a gente, capaz de ser o que não ousamos, para confiar e segurar/dar a bronca. Heróis, pai, mãe, futebol-clube, enfim, são incontáveis as nomenclaturas desta entidade. Mas cada um tem ou teve um modelo, alguém pra pagar pau. Vou reduzir estes personagens ao pseudônimo deus. Não estou me referindo a Ele, mas poderia. Sem retaliações póstumas, ok?!
Vejo ícones fazendo suas últimas apresentações, jogadas, lançamentos, turnês e dá uma aflição pensar que por trás deles há tanto significado que não há palavra capaz de dizer. Lastimo não propriamente a morte, afinal, todo mundo sabe que viver mata. Lamento pelo que isso representa. O mundo só vale enquanto significado, se tirarmos o sentido das coisas, uma pedra vira apenas uma pedra, perde o sentido e só fere. Embora a legítima matéria transcenda às explicações várias.
Estamos presenciando o enterro dos derradeiros deuses, inclusive daqueles que mantiveram sua divindade oculta. Nos despedimos também de todo um legado, de um modo peculiar de ver o mundo, de falar e viver. Em suma, damos adeus a uma gente que resistiu de pé às transformações mais violentas, contrariando previsões médicas, lotando estádios e arenas, andando na contramão. A vida é uma ordem e resistir é o que sabem fazer melhor. Seus currículos contam experiências que jamais experimentaremos.
Cada vez mais sentimos falta de um pretérito-mais-que-perfeito que nem era tão bom assim, mas que bate de longe este presente anônimo.
Falar mal do novo, da decadência da indústria cultural ou do sistema que produz ídolos precoces (entre outras coisas) é apelar para a crítica fácil e não o farei, embora sinta vontade. Se estamos órfãos de referências, as babás que arranjaram para nos distrair são tão carentes quanto. 
A renovação é um processo natural. Acontece que o mundo tem agora aroma artificial de fumaça e não dá para querer naturalidade em um lugar onde os artistas (só eles?) são confeccionados em linhas de produção e sem qualquer controle de qualidade. Não confunda o que digo com o saudosismo mórbido que impera nas rodas dos caretas bêbados. Nada contra as máquinas, só que já está mais do que na hora de pararmos de imitá-las.
Músicos, contadores, a galera do cinema, gente que se pode tocar, enfim, as pessoas mais interessantes que conheci (nem todas pessoalmente) “passaram a catraca” ou estão enganando a morte, colocando um pé e tirando o outro da cova. São os porta-vozes de um mundo que não existe mais, de um tempo que não pertence a lugar algum. Terão seus dados alterados e imagens manipuladas quando aparecerem nos livros didáticos. Para ser bom é preciso estar sempre bem. A morte é sempre um cala-boca, um roubo anunciado!
A história nos mostra que de tempos em tempos, os deuses deixam a terra para que valorizemos os seus feitos. Quando isso acontece, a bruxa mal-amada apavora, proíbe tudo, principalmente o sorriso e o pensamento livre. Por isso que rir e pensar ainda são dos atos mais subversivos. É nesta hora que homens com sangue nos olhos e muitas idéias na cabeça se revelam homens de fato. E de tanto fazer, provocar e desafiar suas sina, conjugando verbos mil, renovam a fé na raça, tornam-se mais que homens e ganham o mundo.
Agora parece que a tal bruxa está novamente solta. Homens, avante!

* Ilustrações de Paulo SS.

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